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Eeefm Doutor Francisco De Albuquerque Montenegro
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<p>Sumário</p><p>Cover</p><p>Folha de rosto</p><p>Sumário</p><p>Sobre o autor</p><p>Nota do tradutor</p><p>EXÍLIOS (1918)</p><p>Primeiro ato</p><p>Segundo ato</p><p>Terceiro ato</p><p>Notas preparatórias de James Joyce</p><p>Fragmentos de diálogos</p><p>Notas de Exílios</p><p>POEMAS</p><p>Récita privada (1907)</p><p>Trocados porversos (1927)</p><p>Ecce puer (1932)</p><p>kindle:embed:0006?mime=image/jpg</p><p>Notas desta edição</p><p>Cronologia</p><p>Sugestões de leitura</p><p>Créditos</p><p>EXÍLIOS E POEMAS</p><p>james joyce nasceu em Dublin em 2 de fevereiro de 1882. Era o</p><p>mais velho dos dez filhos de uma família que, após uma breve</p><p>prosperidade, caiu na pobreza. No entanto, foi educado nas</p><p>melhores escolas jesuítas e mais tarde no University College de</p><p>Dublin. Em 1902, depois de se formar, mudou-se para Paris,</p><p>acreditando que lá pudesse estudar medicina, porém logo acabou</p><p>por assistir a aulas de escrita, a escrever poemas e rascunhos e a</p><p>se dedicar à elaboração de um “sistema estético”. Chamado de volta</p><p>a Dublin em abril de 1903, devido a uma doença fatal de sua mãe,</p><p>aos poucos ele rumou para a carreira literária. No verão de 1904,</p><p>conheceu uma jovem de Galway, Nora Barnacle, e a convenceu a ir</p><p>com ele para o continente, onde planejava lecionar inglês. O jovem</p><p>casal passou alguns meses em Pola (hoje na Croácia); depois, em</p><p>1905, mudou-se para Trieste, onde, exceto por sete meses em</p><p>Roma e por três viagens a Dublin, eles viveram até junho de 1915.</p><p>Tiveram dois filhos, um menino e uma menina. O primeiro livro de</p><p>Joyce, os poemas de Récita privada, foi publicado em Londres em</p><p>1907; e Dublinenses, um livro de contos, em 1914. Com a entrada</p><p>da Itália na Primeira Guerra Mundial, Joyce viu-se obrigado a se</p><p>mudar para Zurique, onde permaneceu até 1919. Nesse período,</p><p>publicou Um retrato do artista quando jovem (1916) e Exílios (1918),</p><p>uma peça. Depois de um breve retorno a Trieste após o armistício,</p><p>Joyce decidiu se mudar para Paris a fim de ter mais facilidade na</p><p>publicação de Ulysses, romance em que estivera trabalhando desde</p><p>1914. O livro foi publicado no seu aniversário, em Paris, em 1922, e</p><p>lhe concedeu fama internacional. No mesmo ano, começou a</p><p>trabalhar em Finnegans Wake e, apesar de muito perturbado com</p><p>problemas num olho e profundamente abalado com a doença</p><p>mental de sua filha, finalizou o livro e o publicou em 1939. Depois do</p><p>começo da Segunda Guerra Mundial, Joyce foi morar na França</p><p>ainda não ocupada e mais tarde, em dezembro de 1940, conseguiu</p><p>permissão para regressar a Zurique, onde morreu seis semanas</p><p>depois, em 13 de janeiro de 1941. Foi enterrado no cemitério</p><p>Fluntern.</p><p>caetano w. galindo nasceu em 1973 em Curitiba, onde mora com um</p><p>piano que não toca, milhares de livros que não leu e uma esposa</p><p>que não merece. Desde 1998 é professor da Universidade Federal</p><p>do Paraná. Traduziu Dublinenses, Um retrato do artista quando</p><p>jovem, Finn’s Hotel e Ulysses, de James Joyce. Escreveu Sim, eu</p><p>digo sim, um guia de leitura do Ulysses, o volume de contos Sobre</p><p>os canibais e Onze poemas. É pai de sua própria Beatriz.</p><p>vitor alevato do amaral é carioca e professor de literaturas de língua</p><p>inglesa na Universidade Federal Fluminense, onde também atua no</p><p>Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura. É</p><p>pesquisador da obra de James Joyce. Seu principal interesse são as</p><p>traduções da obra joyciana no Brasil, estudada da perspectiva da</p><p>retradução. É coordenador do grupo de pesquisa Estudos Joycianos</p><p>no Brasil.</p><p>Nota do tradutor</p><p>Quando se trata do autor do Ulysses — um livro que projeta sombra</p><p>assim tão grande —, é muito fácil que o restante de sua produção</p><p>acabe por receber menos atenção do que poderia. E se esse</p><p>destino já afeta livros como Dublinenses e Um retrato do artista</p><p>quando jovem, o que dizer da atividade de James Joyce em outros</p><p>gêneros, como teatro e poesia?</p><p>Em 1900, aos dezoito anos, Joyce escreveu sua primeira peça de</p><p>teatro. Ela se chamava A Brilliant Career e, depois de recusada para</p><p>edição, acabou sendo destruída pelo autor em 1902. Ele só vai</p><p>retornar ao gênero em 1918, com a publicação de Exílios. A peça,</p><p>portanto, faz parte da obra publicada ainda antes do lançamento do</p><p>Ulysses, em 1922, e tem estreitas ligações com o romance — que já</p><p>vinha sendo escrito e publicado parcialmente em revistas literárias.</p><p>Não cabe tentar reduzi-la a um “estudo” para o Ulysses, mas fica</p><p>claro que Joyce está explorando aqui (como no conto “Os mortos”)</p><p>alguns temas que serão de interesse para a elaboração de seu livro</p><p>mais conhecido: principalmente o adultério e a ideia de que o marido</p><p>possa se ver na posição de instigador da relação adúltera. Mas as</p><p>relações entre os personagens, suas personalidades e os lugares</p><p>que eles ocupam na sociedade e na vida uns dos outros não</p><p>poderiam ser mais diferentes, e o enredo de Exílios é tudo menos</p><p>uma reprodução em ponto menor da situação explorada em</p><p>Ulysses. A peça vale pelo que é; vale como peça independente.</p><p>Nesta edição, incluímos também um conjunto de notas que Joyce</p><p>elaborou durante o processo de escrita da peça e alguns fragmentos</p><p>de diálogos não incluídos na versão final do texto. Mas ao tradutor</p><p>cabe ainda uma pequena nota, referente ao título. Em inglês, exiles</p><p>significa tanto “exílios” quanto “exiladas”, “exilados”. Cada uma</p><p>dessas palavras implicaria leituras diferentes dos temas da peça.</p><p>Opto aqui por aquela que, joyceanamente, me parece a mais</p><p>polissêmica.</p><p>Se o drama acabou representado na obra de Joyce por apenas uma</p><p>peça, a poesia é um caso diferente. Ele esteve constantemente</p><p>envolvido com a escrita de versos desde a mais precoce infância. E</p><p>além de um livro de juventude (Récita privada, 1907) e de outro</p><p>mais tardio (Trocados porversos, 1927), Joyce fez circular de</p><p>maneiras diversas um conjunto variado de poemas de ocasião, que</p><p>deixou praticamente sem publicação. Aqui, reunimos sua obra</p><p>oficialmente recolhida em livro, com aqueles dois volumes e o</p><p>acréscimo de somente um poema esparso.</p><p>A inclusão de “Ecce puer” (1932), escrito na ocasião da morte de</p><p>seu pai e do nascimento de seu neto, se justifica não apenas por se</p><p>tratar talvez do poema mais conhecido de Joyce, mas também por</p><p>ter sido publicado, com o autor ainda vivo, na edição de seus</p><p>Collected Poems (1936), que continha exatamente os mesmos</p><p>poemas apresentados nesta edição.</p><p>Vitor Alevato do Amaral, responsável pelas notas, cronologia e</p><p>sugestões de leitura deste volume, traduziu ele mesmo os poemas</p><p>da juventude e de ocasião em Outra poesia (editora Syrinx, 2022).</p><p>As sugestões de leitura e a cronologia deste volume preocupam-se</p><p>em registrar, além de marcos gerais, publicações e fatos</p><p>diretamente relacionados à poesia e ao teatro. Devo um</p><p>agradecimento especial ao Vitor, pesquisador joyceano de mão-</p><p>cheia, que levou este nosso livro a um nível muito mais alto.</p><p>Com este volume fica completa a publicação, nesta coleção, de toda</p><p>a obra de Joyce anterior ao lançamento de seu último romance, o</p><p>Finnegans Wake, em 1939. Muito obrigado pela leitura até aqui,</p><p>mas, se você me dá licença, eu ainda tenho uma tarefa.</p><p>cwg</p><p>Exílios</p><p>(uma peça em três atos)</p><p>[Exiles: A Play in Three Acts, 1918]</p><p>richard rowan, um escritor</p><p>bertha,</p><p>archie, filho dos dois, de oito anos,</p><p>robert hand,1 jornalista,</p><p>beatrice justice, sua prima, professora de música,</p><p>brigid, uma velha criada da família Rowan,</p><p>uma peixeira</p><p>Em Merrion2 e Ranelagh,3 subúrbios de Dublin</p><p>Verão do ano de 19124</p><p>Primeiro ato</p><p>[Sala de estar da casa de richard rowan em Merrion, subúrbio de</p><p>Dublin. À direita, no fundo do palco, uma lareira diante da qual há</p><p>uma tela baixa. Sobre a lareira um espelho com moldura dourada.</p><p>Mais ao fundo, do lado direito, uma porta sanfonada que leva para a</p><p>sala e a cozinha. Na parede do fundo, à direita, uma porta pequena</p><p>que leva a um escritório. À sua esquerda, um aparador. Na parede</p><p>acima do aparador, o desenho emoldurado de um jovem, feito a giz</p><p>de cera. Mais à esquerda, portas duplas de painéis de vidro que</p><p>levam ao jardim. Na parede à esquerda, uma janela com vista para</p><p>a rua. À frente, na mesma parede, uma porta que leva ao corredor e</p><p>ao andar de cima da casa. Entre a janela e a porta, uma</p><p>escrivaninha feminina</p><p>cadeira de balanço. É a noite do mesmo dia.]</p><p>[robert hand, com trajes de noite, está sentado ao piano. As velas</p><p>não estão acesas, mas a luminária sobre a mesa, sim. Ele toca</p><p>suavemente no registro grave os primeiros compassos da canção</p><p>de Wolfram no último ato de Tannhäuser.20 Depois se interrompe</p><p>e, repousando um cotovelo na borda do teclado, reflete. Em</p><p>seguida se levanta e, depois de tirar um borrifador de trás do</p><p>piano, anda de um lado para outro pelo cômodo soltanto jatos de</p><p>perfume no ar. Aspira o ar lentamente e depois coloca o borrifador</p><p>de novo atrás do piano. Senta numa cadeira perto da mesa e,</p><p>ajeitando cuidadosamente o cabelo, suspira uma ou duas vezes.</p><p>Depois enfia as mãos nos bolsos da calça, reclina-se, estende as</p><p>pernas e espera. Alguém bate na porta da rua. Ele se levanta</p><p>apressado.]</p><p>robert</p><p>(exclama) Bertha!</p><p>[Ele sai apressado pela porta da direta. Sons de uma saudação</p><p>confusa. Depois de alguns instantes, robert entra, seguido por</p><p>richard rowan, que está com o mesmo terno cinza-claro de tweed;</p><p>numa das mãos tem um chapéu de feltro escuro e, na outra, um</p><p>guarda-chuva.]</p><p>robert</p><p>Antes de mais nada, deixa eu guardar isto aqui.</p><p>[Ele pega o chapéu e o guarda-chuva, deixa-os no corredor de</p><p>entrada e volta.]</p><p>robert</p><p>(puxando uma cadeira) Então você veio. Sorte sua me encontrar</p><p>aqui. Por que não me disse que viria? Você sempre gostou de</p><p>surpresas, seu diabinho. Imagino que a minha evocação do passado</p><p>tenha sido demais para esse seu sangue férvido. Olha como eu</p><p>fiquei artístico. (aponta para a parede) O piano também não estava</p><p>aqui na sua época. Agora mesmo eu estava tocando Wagner, antes</p><p>de você chegar. Matando o tempo. Como você pode ver, estou</p><p>pronto para a batalha. (ri) Agora mesmo estava pensando em como</p><p>você e o vice-reitor estariam se dando. (com espanto exagerado)</p><p>Mas você vai com esse terno? Ah, enfim, não deve fazer tanta</p><p>diferença. Mas que horas serão? (tira o relógio do bolso) Nossa, oito</p><p>e vinte!</p><p>richard</p><p>Você está esperando alguém?</p><p>robert</p><p>(ri, nervoso) Sempre desconfiado!</p><p>richard</p><p>Então posso sentar?</p><p>robert</p><p>Claro, claro. (os dois sentam) Por alguns minutos, pelo menos. Aí</p><p>podemos ir os dois juntos. O horário não era rígido. Entre oito e</p><p>nove, ele disse, não foi? Que horas são? (está prestes a olhar de</p><p>novo no relógio; então para) Oito e vinte, sim.</p><p>richard</p><p>(cansado, triste) Você estava esperando alguém no mesmo horário.</p><p>Aqui.</p><p>robert</p><p>Esperando quem?</p><p>richard</p><p>Bertha.</p><p>robert</p><p>(olha fixo para ele) Você enlouqueceu?</p><p>richard</p><p>Você enlouqueceu?</p><p>robert</p><p>(depois de uma longa pausa) Quem te contou?</p><p>richard</p><p>Ela.</p><p>[Breve silêncio.]</p><p>robert</p><p>(falando baixo) Sim. Eu devo ter enlouquecido. (acelerado) Escute,</p><p>Richard. Para mim é um grande alívio você ter vindo — um alívio</p><p>imenso. Eu te garanto que de hoje à tarde até agora fiquei o tempo</p><p>todo pensando em como desmarcar isso tudo sem parecer um</p><p>tonto. Um grande alívio! Até pensei em mandar um bilhete… uma</p><p>carta, algumas linhas. (de repente) Mas aí era tarde demais…</p><p>(passa a mão pela testa) Deixe eu falar com franqueza com você;</p><p>deixe eu te contar tudo.</p><p>richard</p><p>Eu sei de tudo. Sei já há algum tempo.</p><p>robert</p><p>Desde quando?</p><p>richard</p><p>Desde que começou, entre você e ela.</p><p>robert</p><p>(de novo acelerado) Sim, eu enlouqueci. Mas foi mera leviandade.</p><p>Concordo que ter dito para ela vir aqui hoje à noite foi um equívoco.</p><p>Posso te explicar tudo. E vou. Verdade.</p><p>richard</p><p>Então me explique qual é a palavra que você queria tanto dizer a ela</p><p>e nunca ousou. Se puder ou se quiser.</p><p>robert</p><p>(baixa os olhos, depois ergue a cabeça) Sim. Vou explicar. Eu</p><p>admiro demais a personalidade da sua… da… sua esposa. Essa é a</p><p>palavra. Eu posso dizer. Não é segredo.</p><p>richard</p><p>Então por que quis manter a sua corte em segredo?</p><p>robert</p><p>Corte?</p><p>richard</p><p>A suas investidas sobre ela, pouco a pouco, dia a dia, olhares,</p><p>sussurros. (com um movimento nervoso das mãos) Insomma,21</p><p>corte.</p><p>robert</p><p>(desorientado) Mas como você sabe disso tudo?</p><p>richard</p><p>Ela me contou.</p><p>robert</p><p>Hoje à tarde?</p><p>richard</p><p>Não. A cada vez, à medida que ia acontecendo.</p><p>robert</p><p>Você ficou sabendo? Por ela? (richard concorda com a cabeça)</p><p>Você estava de olho em nós dois o tempo todo?</p><p>richard</p><p>(com muita frieza) Eu estava de olho em você.</p><p>robert</p><p>(rápido) Quer dizer, de olho em mim. E nunca abriu a boca! Era só</p><p>você dizer uma palavra… para me salvar de mim mesmo. Você ficou</p><p>me testando. (passa de novo a mão pela testa) Foi um julgamento</p><p>terrível: e agora também. (desesperado) Bom, já passou. Vai ser</p><p>uma lição que eu vou levar para a vida toda. Agora você me odeia</p><p>pelo que eu fiz e por…</p><p>richard</p><p>(tranquilo, olhando para ele) Quem disse que eu te odeio?</p><p>robert</p><p>Não odeia? Deveria odiar.</p><p>richard</p><p>Mesmo que Bertha não tivesse me contado, eu saberia. Não</p><p>percebeu que quando cheguei hoje à tarde eu passei por um</p><p>instante no meu escritório?</p><p>robert</p><p>Passou. Eu lembro.</p><p>richard</p><p>Para você ter tempo de se recuperar. Ver os seus olhos me deixou</p><p>triste. E as rosas também. Não sei dizer por quê. Um grande maço</p><p>de rosas passadas.</p><p>robert</p><p>Achei que eu tinha que dar as flores. Foi estranho? (olha para</p><p>richard com expressão torturada) Muitas, talvez? Ou velhas demais?</p><p>Comuns demais?</p><p>richard</p><p>Foi por isso que eu não te odiei. Aquilo tudo me deixou</p><p>imediatamente triste.</p><p>robert</p><p>(para si próprio) E isso é real. Está acontecendo… conosco.</p><p>[Ele olha fixo para a frente por algum tempo, como que</p><p>entorpecido; depois, sem virar a cabeça, continua.]</p><p>robert</p><p>E ela também estava me testando; fazendo um experimento comigo</p><p>por sua causa!</p><p>richard</p><p>Você conhece as mulheres melhor que eu. Ela diz que se apiedou</p><p>de você.</p><p>robert</p><p>(pensativo) Ela se apiedou de mim porque eu não sou mais… um</p><p>amante ideal. Como as minhas rosas. Comum, velho.</p><p>richard</p><p>Como todos os homens, você tem um coração tolo e inconstante.</p><p>robert</p><p>(devagar) Bom, finalmente você abriu a boca. Escolheu o momento</p><p>certo.</p><p>richard</p><p>(inclina-se para a frente) Robert, assim não. Para nós dois, não.</p><p>Anos, uma vida toda de amizade. Pense um pouco. Desde a</p><p>infância, meninos… Não, não. Não desse jeito — como ladrões —, à</p><p>noite. (olhando em torno) E num lugar como este. Não, Robert, isso</p><p>não é para pessoas como nós.</p><p>robert</p><p>Que lição! Richard, mal posso te dizer o alívio que é para mim você</p><p>ter aberto a boca — que o perigo tenha passado. Sim, sim. (sem</p><p>muita confiança) Porque… havia algum perigo para você também,</p><p>se você parar para pensar. Não é verdade?</p><p>richard</p><p>Que perigo?</p><p>robert</p><p>(no mesmo tom) Não sei. Quer dizer, se você não tivesse aberto a</p><p>boca. Se tivesse ficado assistindo e esperando até…</p><p>richard</p><p>Até?</p><p>robert</p><p>(corajosamente) Até eu ter passado a gostar cada vez mais dela</p><p>(posso te garantir que se trata apenas de uma ideia leviana minha),</p><p>a gostar de verdade dela, a amar. Nessa situação, você falaria</p><p>comigo como falou agora? (richard está calado. robert prossegue</p><p>com mais audácia) Seria diferente, não é verdade? Porque poderia</p><p>ser tarde demais, enquanto agora não é. O que eu iria dizer nesse</p><p>caso? Apenas isto: você é meu amigo, um bom amigo querido. Sinto</p><p>muitíssimo, mas isso é amor. (com um súbito gesto ardente) Eu a</p><p>amo e vou tirar essa mulher de você custe o que custar, porque é</p><p>amor.</p><p>[Eles se olham por algum tempo em silêncio.]</p><p>richard</p><p>(com calma) É uma linguagem que eu já ouvi muitas vezes e na</p><p>qual nunca acreditei. Você está falando de manobras ou de</p><p>violência? Roubar, na minha casa, seria impossível, porque as</p><p>portas estavam abertas; nem levar Bertha com violência, se não</p><p>havia resistência.</p><p>robert</p><p>Você esquece que o reino dos céus é arrebatado à força — o reino</p><p>dos céus é como uma mulher.</p><p>richard</p><p>(sorrindo) Continue.</p><p>robert</p><p>(sem confiança, mas corajosamente) Você acha que tem direitos</p><p>sobre ela — sobre o coração dela?</p><p>richard</p><p>Nenhum.</p><p>robert</p><p>Pelo que fez por ela? Tanto! Você não pede nada?</p><p>richard</p><p>Nada.</p><p>robert</p><p>(depois de uma pausa, bate com a mão na testa) Do que é que eu</p><p>estou falando? Ou o que é que eu estou pensando? Queria que</p><p>você me repreendesse ou</p><p>me xingasse, queria até que você me</p><p>odiasse como eu mereço. Você ama essa mulher. Lembro tudo que</p><p>você me contou tanto tempo atrás. Ela é sua, obra sua.</p><p>(repentinamente) Por isso eu também me senti atraído por ela. Você</p><p>é tão forte que atrai até a mim, através dela.</p><p>richard</p><p>Eu sou fraco.</p><p>robert</p><p>(com entusiasmo) Você, Richard! Você é a encarnação da força.</p><p>richard</p><p>(estende as mãos) Sinta estas mãos.</p><p>robert</p><p>(segurando as mãos dele) Sim. As minhas são mais fortes. Mas eu</p><p>estava falando de outro tipo de força.</p><p>richard</p><p>(lúgubre) Acho que você ia tentar levá-la com violência.</p><p>[Ele retira as mãos lentamente.]</p><p>robert</p><p>(apressado) São momentos de pura loucura quando sentimos uma</p><p>paixão intensa por uma mulher. Não enxergamos mais nada. Não</p><p>pensamos em mais nada. Só para tê-la. Pode dizer que é brutal,</p><p>que é bestial, o que você quiser.</p><p>richard</p><p>(com certa timidez) Talvez esse desejo de possuir uma mulher não</p><p>seja amor.</p><p>robert</p><p>(impaciente) Ainda não viveu nesta terra o homem que não desejou</p><p>possuir — eu falo de possuir carnalmente — a mulher que ama. É a</p><p>lei da natureza.</p><p>richard</p><p>(com desdém) E eu com isso? Eu votei essa lei?</p><p>robert</p><p>Mas se você ama… O que mais seria?</p><p>richard</p><p>(hesitando) Querer o bem dela.</p><p>robert</p><p>(calorosamente) Mas a paixão que arde dentro de nós, noite e dia,</p><p>por possuir essa mulher. Você sente tanto quanto eu. E não foi o</p><p>que você disse agora.</p><p>richard</p><p>Você tem…? (para um momento) Você tem a certeza luminosa de</p><p>que o seu é o cérebro em contato com o qual ela há de pensar e</p><p>compreender e de que o seu é o corpo em contato com o qual o</p><p>dela há de sentir? Você tem essa certeza por dentro?</p><p>robert</p><p>Você tem?</p><p>richard</p><p>(comovido) Um dia eu tive, Robert: uma certeza tão luminosa quanto</p><p>a da minha própria existência — ou uma ilusão tão luminosa.</p><p>robert</p><p>(cautelosamente) E agora?</p><p>richard</p><p>Se você tivesse e eu conseguisse sentir que você tinha — mesmo</p><p>agora…</p><p>robert</p><p>Você faria o quê?</p><p>richard</p><p>(com tranquilidade) Iria embora. Você, e não eu, seria necessário</p><p>para ela. Sozinho como eu estava antes de conhecê-la.</p><p>robert</p><p>(esfrega as mãos nervosamente) Belo fardo para a minha</p><p>consciência!</p><p>richard</p><p>(absorto) Você encontrou o meu filho quando esteve lá em casa à</p><p>tarde. Ele me disse. O que você sentiu?</p><p>robert</p><p>(sem titubear) Prazer.</p><p>richard</p><p>Mais nada?</p><p>robert</p><p>Mais nada. A não ser que eu tenha pensado duas coisas ao mesmo</p><p>tempo. Eu sou assim. Se o meu melhor amigo estivesse no caixão</p><p>com uma expressão engraçada no rosto, eu ia rir. (com um pequeno</p><p>gesto de desespero) Eu sou assim. Mas também ia sofrer,</p><p>profundamente.</p><p>richard</p><p>Você estava falando de consciência… Ele te pareceu apenas uma</p><p>criança — ou um anjo?</p><p>robert</p><p>(balança a cabeça) Não. Nem anjo nem anglo-saxão.22 Duas coisas,</p><p>aliás, pelas quais eu tenho muito pouca simpatia.</p><p>richard</p><p>Nunca então? Nem… com ela? Me diga. Eu quero saber.</p><p>robert</p><p>Eu sinto algo diferente no coração. Acredito que no dia final (se ele</p><p>vier de fato), quando estivermos todos reunidos, o Todo-Poderoso</p><p>vai falar dessa maneira conosco. Nós vamos dizer que vivemos de</p><p>maneira recatada com uma única criatura…</p><p>richard</p><p>(amargo) Mentir para Ele?</p><p>robert</p><p>Ou que tentamos. E Ele vai nos dizer: tontos! Quem foi que disse</p><p>que era para vocês se entregarem apenas a uma criatura? Vocês</p><p>foram criados para se entregar livremente a muitas. Gravei com meu</p><p>dedo essa lei no coração de vocês.</p><p>richard</p><p>No coração da mulher também?</p><p>robert</p><p>Sim. É possível fechar o coração para uma afeição que sentimos de</p><p>maneira profunda? Nós devíamos fechar? E ela, devia?</p><p>richard</p><p>Nós estamos falando de união de corpos.</p><p>robert</p><p>A afeição entre homem e mulher pode chegar a isso. Nós levamos a</p><p>sério demais porque a nossa cabeça é torta. Hoje para nós isso tem</p><p>a mesma relevância do que qualquer outra forma de contato — até</p><p>mesmo de um beijo.</p><p>richard</p><p>Se não tem relevância, então por que você só fica satisfeito quanto</p><p>alcança esse fim? Por que estava esperando aqui nesta noite?</p><p>robert</p><p>A paixão tende a ir o mais longe que ela pode ir; mas, e você pode</p><p>ou não acreditar em mim, eu não tinha isso em mente — alcançar</p><p>esse fim.</p><p>richard</p><p>Alcance-o se puder. Não vou usar nenhuma arma contra você que o</p><p>mundo ponha em minhas mãos. Se a lei que o dedo de Deus gravou</p><p>no nosso coração é a lei que você diz, eu também sou uma criatura</p><p>de Deus.</p><p>[Ele se levanta e anda de um lado para outro em silêncio por</p><p>alguns momentos. Depois vai na direção da varanda e se apoia</p><p>no batente da porta. robert fica olhando para ele.]</p><p>robert</p><p>Eu sempre senti. Em mim e nos outros.</p><p>richard</p><p>(distraído) Sim?</p><p>robert</p><p>(com um gesto vago) Por todos. Que a mulher também tem o direito</p><p>de tentar com vários homens até encontrar o amor. Uma ideia</p><p>imoral, não é? Eu quis escrever um livro a respeito. Cheguei a</p><p>começar…</p><p>richard</p><p>(como antes) Sim?</p><p>robert</p><p>Porque conheci uma mulher que me pareceu estar fazendo isso —</p><p>executando essa ideia em sua vida. Ela me interessou muitíssimo.</p><p>richard</p><p>Quando foi isso?</p><p>robert</p><p>Ah, faz muito tempo. Quando você estava fora.</p><p>[richard sai um tanto abruptamente de onde estava e se põe a</p><p>andar de novo de um lado para outro.]</p><p>robert</p><p>Está vendo? Sou mais honesto do que você achava.</p><p>richard</p><p>Queria que você não tivesse pensado nela agora — seja quem</p><p>tenha sido ela ou quem for.</p><p>robert</p><p>(com leveza) Ela era e é a esposa de um corretor de ações.</p><p>richard</p><p>(virando-se) Você conhece o sujeito?</p><p>robert</p><p>Intimamente.</p><p>[richard senta de novo no mesmo lugar e se inclina para a frente</p><p>com a cabeça nas mãos.]</p><p>robert</p><p>(levando sua cadeira para um pouco mais perto) Posso te fazer uma</p><p>pergunta?</p><p>richard</p><p>Pode.</p><p>robert</p><p>(com certa hesitação) Será que nunca te aconteceu nesses anos</p><p>todos — quero dizer, quando você ficou longe dela, talvez, ou</p><p>viajando — de… de traí-la com outra? Traí-la, quero dizer, não no</p><p>amor. Carnalmente, quero dizer… Isso nunca aconteceu com você?</p><p>richard</p><p>Aconteceu.</p><p>robert</p><p>E o que você fez?</p><p>richard</p><p>(como antes) Eu me lembro da primeira vez. Cheguei em casa. Era</p><p>noite. Minha casa estava em silêncio. Meu filho dormia no berço. Ela</p><p>também estava dormindo. Eu a acordei e contei. Chorei ao pé da</p><p>cama dela; e rasguei seu coração.</p><p>robert</p><p>Ah, Richard, por que você fez uma coisa dessa?</p><p>richard</p><p>Traí-la?</p><p>robert</p><p>Não. Contar para ela, fazê-la acordar para ouvir. Rasgar o coração</p><p>dela.</p><p>richard</p><p>Ela precisa me conhecer como eu sou.</p><p>robert</p><p>Mas isso não é você. Um momento de fraqueza.</p><p>richard</p><p>(perdido em pensamentos) Eu estava alimentando a chama da</p><p>inocência dela com a minha culpa.</p><p>robert</p><p>(bruscamente) Ah, não me venha falar de culpa e de inocência.</p><p>Você fez dela o que ela é. Uma personalidade estranha e</p><p>maravilhosa — aos meus olhos, pelo menos.</p><p>richard</p><p>(lúgubre) Ou a matei.</p><p>robert</p><p>Matou?</p><p>richard</p><p>A virgindade da alma dela.</p><p>robert</p><p>(impaciente) E já foi tarde! O que ela seria sem você?</p><p>richard</p><p>Eu tentei dar a ela uma nova vida.</p><p>robert</p><p>E deu. Uma vida nova e rica.</p><p>richard</p><p>E vale o que eu tirei dela? A juventude, o riso, a beleza fresca, as</p><p>esperanças que moravam naquele coração jovem?</p><p>robert</p><p>(com firmeza) Vale. Vale muito. (olha para richard em silêncio por</p><p>alguns instantes) Se você a tivesse negligenciado, vivido de maneira</p><p>irresponsável, tirado ela daqui só para fazê-la sofrer…</p><p>[Ele para. richard ergue a cabeça e olha para ele.]</p><p>richard</p><p>Se eu tivesse?</p><p>robert</p><p>(levemente confuso) Você sabe que correram alguns boatos sobre a</p><p>vida de vocês no exterior — de uma vida irresponsável. Pessoas</p><p>que te conheciam ou que te viram ou ficaram sabendo de coisas em</p><p>Roma. Boatos mentirosos.</p><p>richard</p><p>(com frieza) Continue.</p><p>robert</p><p>(ri de modo um pouco rude) Até eu cheguei a pensar nela como</p><p>uma vítima. (suavemente) E é claro, Richard, que eu sentia e sabia</p><p>o tempo todo que você era um homem de grande talento — alguém</p><p>com mais do que talento. Essa era a sua desculpa — e era válida</p><p>aos meus olhos.</p><p>richard</p><p>Você já pensou que talvez seja agora — neste momento — que a</p><p>estou negligenciando? (nervoso, junta</p><p>as mãos e se inclina na</p><p>direção de robert) Eu ainda posso ficar calado. E ela enfim pode</p><p>ceder a você — totalmente, e muitas vezes.</p><p>robert</p><p>(afasta-se imediatamente) Meu caro Richard, meu querido amigo,</p><p>juro que eu seria incapaz de te fazer sofrer.</p><p>richard</p><p>(continuando) Você então pode conhecer de corpo e alma, de</p><p>centenas de formas, e sempre e sem parar, o que um antigo</p><p>teólogo, Duns Scotus,23 acho, chamou de morte do espírito.</p><p>robert</p><p>(ansioso) Morte. Não; é afirmação! Morte! O supremo instante vital</p><p>de que procede toda a vida futura, a eterna lei da própria natureza.</p><p>richard</p><p>E aquela outra lei da natureza, como você diz: mudança. Como será</p><p>quando você se virar contra ela e contra mim; quando a beleza dela,</p><p>ou o que agora te parece beleza, cansá-lo, e quando meu afeto por</p><p>você te parecer falso e odioso?</p><p>robert</p><p>Isso nunca vai acontecer. Nunca.</p><p>richard</p><p>E você se virar até contra si próprio por ter me conhecido ou se</p><p>relacionado comigo e com ela?</p><p>robert</p><p>(sério) Nunca vai ser assim, Richard. Pode ter certeza.</p><p>richard</p><p>(com desdém) Se vai ou não ser assim, é algo que me incomoda</p><p>muito pouco, porque tenho muito mais medo de outra coisa.</p><p>robert</p><p>(balança a cabeça) Você com medo? Não acredito, Richard. Desde</p><p>a nossa infância eu acompanho a sua mente. Você não sabe o que</p><p>é o medo moral.</p><p>richard</p><p>(põe a mão no braço dele) Escute. Ela está morta. Está estendida</p><p>na minha cama. Eu olho para o corpo dela que traí —</p><p>grosseiramente e muitas vezes. E que amei também, e que me fez</p><p>chorar. Sei que o corpo dela foi sempre meu escravo leal. Para mim,</p><p>somente para mim ela entregou… (interrompe-se e vira o rosto,</p><p>incapaz de falar) robert</p><p>(baixinho) Não sofra, Richard. Não há necessidade. Ela é leal a</p><p>você, de corpo e alma. Por que está com medo?</p><p>richard</p><p>(vira-se para ele, quase com fúria) Não esse medo. Mas de que eu</p><p>venha a me censurar por ter ficado com tudo para mim porque não</p><p>suportava que ela entregasse a outro o que lhe pertencia, e não a</p><p>mim, porque aceitei sua lealdade e tornei sua vida mais pobre de</p><p>amor. Esse é o meu medo. De que eu fique entre ela e algum</p><p>momento da vida que deveria pertencer a ela, que eu fique entre ela</p><p>e você, entre ela e qualquer um, entre ela e qualquer coisa. Não</p><p>farei uma coisa dessa. Não posso e não vou. Não ouso.</p><p>[Ele se reclina sem fôlego na cadeira, olhos brilhantes. robert se</p><p>levanta em silêncio e se põe atrás de sua cadeira.]</p><p>robert</p><p>Veja bem, Richard. Nós já dissemos tudo que havia para dizer.</p><p>Vamos deixar o passado para trás.</p><p>richard</p><p>(apressada e asperamente) Espere. Só mais uma coisa. Você</p><p>também precisa me conhecer como eu sou — agora.</p><p>robert</p><p>Mais? Tem mais?</p><p>richard</p><p>Eu disse que quando vi seus olhos hoje à tarde fiquei triste. A sua</p><p>humildade e a sua confusão, foi o que eu senti, nos uniam como</p><p>irmãos. (vira-se para o outro) Naquele momento senti a nossa vida</p><p>toda juntos no passado e quis passar meu braço em seu ombro.</p><p>robert</p><p>(profunda e repentinamente emocionado) É nobre da sua parte,</p><p>Richard, me perdoar assim.</p><p>richard</p><p>(lutando consigo mesmo) Eu te disse que queria que você não</p><p>tivesse mais atitudes falsas nem secretas comigo — contra a nossa</p><p>amizade, contra Bertha; que não a roubasse de mim de maneira</p><p>ardilosa, secreta, maldosa — no escuro, na noite — você, Robert,</p><p>meu amigo.</p><p>robert</p><p>Eu sei. Foi nobre da sua parte.</p><p>richard</p><p>(olha para ele com um olhar firme) Não. Nobre, não. Ignóbil.</p><p>robert</p><p>(com um movimento involuntário) Como? Por quê?</p><p>richard</p><p>(desvia os olhos novamente; em voz mais baixa) É o que preciso te</p><p>contar também. Bem no fundo do meu coração ignóbil eu quis ser</p><p>traído por você e por ela — no escuro, na noite — de maneira</p><p>secreta, maldosa, ardilosa. Por você, meu melhor amigo, e por ela.</p><p>Eu desejava essa situação, passional e ignóbil, ficar para sempre</p><p>desonrado pelo amor e pela luxúria, ser…</p><p>robert</p><p>(curvando-se, coloca as mãos sobre a boca de richard) Chega.</p><p>Chega. (tira as mãos) Mas não. Continue.</p><p>richard</p><p>Ser para sempre uma criatura da vergonha e reconstruir a minha</p><p>alma sobre as ruínas dessa vergonha.</p><p>robert</p><p>Por isso você queria que ela…</p><p>richard</p><p>(calmo) Ela sempre falou da inocência dela, como eu sempre falei</p><p>da minha culpa, me rebaixando.</p><p>robert</p><p>Por orgulho então?</p><p>richard</p><p>Por orgulho e por um desejo ignóbil. E por um motivo ainda mais</p><p>profundo.</p><p>robert</p><p>(com determinação) Eu te entendo.</p><p>[Ele volta para o seu lugar e começa a falar, puxando a cadeira</p><p>mais para perto.]</p><p>robert</p><p>Não pode bem ser que nós estejamos aqui e agora diante de um</p><p>momento que há de nos libertar — a mim e a você — dos últimos</p><p>laços do que se chama de moralidade? A amizade que tenho por</p><p>você me prendeu em seus laços.</p><p>richard</p><p>Laços leves, ao que parece.</p><p>robert</p><p>Eu agi no escuro, em segredo. Não farei mais isso. Você tem a</p><p>coragem de me permitir uma livre ação?</p><p>richard</p><p>Um duelo — entre nós?</p><p>robert</p><p>(cada vez mais agitado) Uma batalha entre as nossas almas, com</p><p>todas as suas diferenças, contra tudo que é falso nelas e no mundo.</p><p>Uma batalha da sua alma contra o espectro da fidelidade, da minha</p><p>contra o espectro da amizade. A vida toda é uma conquista, a vitória</p><p>da paixão humana sobre os mandamentos da covardia. Você aceita,</p><p>Richard? Você tem essa coragem? Mesmo que isso atomize a</p><p>amizade que existe entre nós, mesmo que estilhace para sempre a</p><p>última ilusão da sua própria vida? Havia uma eternidade antes de</p><p>nascermos: virá outra depois que morrermos. Apenas o instante</p><p>cego da paixão — da paixão livre, desavergonhada, irresistível —, é</p><p>esse o único portal que permite fugir da miséria daquilo que os</p><p>escravos chamam de vida. Não é essa a linguagem da sua</p><p>juventude, que tantas vezes ouvi de você neste mesmíssimo lugar</p><p>em que estamos agora? Você mudou?</p><p>richard</p><p>(passa a mão pela testa) Sim. É a linguagem da minha juventude.</p><p>robert</p><p>(ansioso, intenso) Richard, você me trouxe a este ponto. Ela e eu</p><p>apenas obedecemos à sua vontade. Foi você quem despertou</p><p>essas palavras no meu cérebro. As suas próprias palavras. Vamos.</p><p>Em liberdade? Juntos?</p><p>richard</p><p>(controlando a emoção) Juntos não. Enfrente sozinho a sua luta. Eu</p><p>não vou te libertar. Deixe que eu enfrente a minha.</p><p>robert</p><p>(levanta-se, decidido) Você me autoriza, então?</p><p>richard</p><p>(também se levanta, calmamente) Se liberte sozinho.</p><p>[Alguém bate na porta da entrada.]</p><p>robert</p><p>(assustado) O que isso significa?</p><p>richard</p><p>(calmo) Bertha, obviamente. Não pediu para ela vir?</p><p>robert</p><p>Sim, mas… (olhando em volta) Então eu vou embora, Richard.</p><p>richard</p><p>Não. Eu vou embora.</p><p>robert</p><p>(desesperado) Richard, eu te peço. Me deixe sair daqui. Acabou.</p><p>Ela é sua. Fique com ela para você e me perdoem, os dois.</p><p>richard</p><p>Porque você é suficientemente generoso para me permitir isso?</p><p>robert</p><p>(irritado) Richard, você vai me deixar com raiva de você se disser</p><p>uma coisa dessa.</p><p>richard</p><p>Com ou sem raiva, eu não vou viver da sua generosidade. Você</p><p>pediu para ela te encontrar hoje aqui, a sós. Resolvam a questão</p><p>entre vocês.</p><p>robert</p><p>(prontamente) Abra a porta. Eu vou esperar no jardim. (vai na</p><p>direção da varanda) Explique a ela, Richard, como você puder. Eu</p><p>não posso falar com ela agora.</p><p>richard</p><p>Eu vou embora. Estou te dizendo. Espere lá fora se quiser.</p><p>[Ele sai pela porta da direita. robert sai apressado pela varanda,</p><p>mas volta no mesmo instante.]</p><p>robert</p><p>O guarda-chuva! (com um gesto súbito) Ah!</p><p>[Ele sai novamente pela varanda. Ouve-se a porta da entrada</p><p>abrindo e se fechando. richard entra, seguido por bertha, que usa</p><p>um traje marrom-escuro e um pequeno chapéu bordô. Ela não</p><p>traz um guarda-chuva nem está com um impermeável.]</p><p>richard</p><p>(animado) Bem-vinda outra vez à velha Irlanda!</p><p>bertha</p><p>(nervosa, séria) É este o lugar?</p><p>richard</p><p>Sim, é aqui. Como você fez para achar?</p><p>bertha</p><p>Falei com o motorneiro. Não quis ficar perguntando. (olhando em</p><p>volta, curiosa) Ele não estava esperando? Foi embora?</p><p>richard</p><p>(aponta para o jardim) Está esperando lá fora. Estava esperando</p><p>quando eu cheguei.</p><p>bertha</p><p>(controlada) Viu? Você acabou vindo.</p><p>richard</p><p>Você achou</p><p>que eu não viria?</p><p>bertha</p><p>Eu sabia que você não ia se manter afastado. Sabe, no fim você é</p><p>igual a todos os homens. Tinha que vir. Você tem ciúme como os</p><p>outros.</p><p>richard</p><p>Você parece irritada por me encontrar aqui.</p><p>bertha</p><p>O que aconteceu entre vocês?</p><p>richard</p><p>Eu disse que sabia de tudo, que sabia fazia muito tempo. Ele</p><p>perguntou como. Eu disse que através de você.</p><p>bertha</p><p>Ele me odeia?</p><p>richard</p><p>Eu não posso ler o coração dele.</p><p>bertha</p><p>(senta, desconsolada) Sim. Ele me odeia. Acha que eu o fiz de bobo</p><p>— que o traí. Eu sabia que ele ia achar.</p><p>richard</p><p>Eu disse que você foi sincera com ele.</p><p>bertha</p><p>Ele não acredita. Ninguém iria acreditar. Devia ter contado a ele</p><p>primeiro — não a você.</p><p>richard</p><p>Achei que ele fosse um ladrãozinho comum, disposto até a</p><p>empregar violência contra você. Eu tinha que te proteger disso.</p><p>bertha</p><p>Isso eu podia ter feito sozinha.</p><p>richard</p><p>Tem certeza?</p><p>bertha</p><p>Bastava dizer que você sabia que eu estava aqui. Agora não posso</p><p>descobrir mais nada. Ele me odeia. E com razão. Eu o tratei mal, de</p><p>um modo vergonhoso.</p><p>richard</p><p>(segura a mão dela) Bertha, olhe para mim.</p><p>bertha</p><p>(vira-se para ele) O quê?</p><p>richard</p><p>(olha no fundo dos olhos de bertha e depois solta a mão dela) Eu</p><p>também não posso ler seu coração.</p><p>bertha</p><p>(ainda olhando para ele) Você não podia ficar longe. Não confia em</p><p>mim? Você pode ver que eu estou bem calma. Eu podia ter</p><p>escondido tudo de você.</p><p>richard</p><p>Duvido.</p><p>bertha</p><p>(jogando de leve a cabeça para trás) Ah, seria fácil se eu quisesse.</p><p>richard</p><p>(lúgubre) Talvez você agora lamente não ter feito desse modo.</p><p>bertha</p><p>Talvez.</p><p>richard</p><p>(desagradável) Como você foi tola por me contar! Teria sido muito</p><p>bom se tivesse mantido segredo.</p><p>bertha</p><p>Como você faz, não é?</p><p>richard</p><p>Sim, como eu faço. (vira-se para sair) Adeus por enquanto.</p><p>bertha</p><p>(assustada, se levanta) Você vai embora?</p><p>richard</p><p>Claro. Meu papel acabou aqui.</p><p>bertha</p><p>Você vai atrás dela, imagino?</p><p>richard</p><p>(atônito) De quem?</p><p>bertha</p><p>Sua Senhoria. Imagino que esteja tudo planejado para você ter uma</p><p>boa oportunidade. De se encontrar com ela e ter uma conversa</p><p>intelectual!</p><p>richard</p><p>(com uma explosão de raiva descontrolada) Vou me encontrar é</p><p>com o diabo que me carregue!</p><p>bertha</p><p>(solta o alfinete do chapéu e senta) Pois muito bem. Pode ir. Agora</p><p>eu sei o que fazer.</p><p>richard</p><p>(volta, aproxima-se dela) Você não acredita numa única palavra do</p><p>que está dizendo.</p><p>bertha</p><p>(calma) Pode ir. Está esperando o quê?</p><p>richard</p><p>Então você veio até aqui e o encorajou por minha causa. É isso?</p><p>bertha</p><p>Em toda essa história só há uma pessoa que não é burra. Você. Eu</p><p>sou. E ele também.</p><p>richard</p><p>(continuando) Se isso é verdade, então de fato você o tratou de</p><p>maneira má e vergonhosa.</p><p>bertha</p><p>(aponta para ele) Sim. Mas por culpa sua. E vou acabar com isso</p><p>agora. Eu, para você, sou apenas um instrumento. Você não tem</p><p>respeito por mim. Nunca teve por eu ter feito o que fiz.</p><p>richard</p><p>E ele tem respeito?</p><p>bertha</p><p>Ele tem. De todas as pessoas que encontrei na minha volta, é o</p><p>único que tem. E ele sabe o que os outros só suspeitam. Por isso</p><p>gostei dele desde o início, e ainda gosto. Ela é que me respeita</p><p>muito! Por que você não pediu para ela ir embora com você nove</p><p>anos atrás?</p><p>richard</p><p>Você sabe por quê, Bertha. Pergunte a si mesma.</p><p>bertha</p><p>Sim, eu sei por quê. Você sabia a resposta que ia receber. Foi por</p><p>isso.</p><p>richard</p><p>Não foi por isso. Eu nem pedi para você ir.</p><p>bertha</p><p>Sim. Você sabia que eu iria, pedindo ou não. Eu faço coisas. Mas se</p><p>faço uma coisa, posso fazer duas. Se já fiz a fama, posso deitar na</p><p>cama.</p><p>richard</p><p>(cada vez mais agitado) Bertha, eu aceito o que tem de ser. Confiei</p><p>em você. E vou confiar.</p><p>bertha</p><p>Para ter isso contra mim. Para me abandonar depois. (quase</p><p>apaixonadamente) Por que então você não me defende dele? Por</p><p>que agora me deixa aqui sem dizer uma palavra? Dick, meu Deus,</p><p>diga o que você quer que eu faça!</p><p>richard</p><p>Eu não posso, querida. (lutando internamente) É o seu coração que</p><p>vai te dizer. (segura as mãos dela) Sinto um deleite louco na alma,</p><p>Bertha, quando olho para você. Eu te vejo como você é. O fato de</p><p>eu ter chegado primeiro à sua vida ou antes dele — pode não ser</p><p>nada para você. Você pode ser mais dele que minha.</p><p>bertha</p><p>Não sou. Só que também sinto pena dele.</p><p>richard</p><p>Eu também. Você pode ser dele e minha. Vou confiar em você,</p><p>Bertha, e nele também. Eu preciso. Não posso odiá-lo por ele a ter</p><p>tido nos braços. Você nos aproximou. Há alguma coisa mais sábia</p><p>do que a sabedoria em seu coração. Quem sou eu para me chamar</p><p>de dono do seu coração ou do coração de qualquer outra mulher?</p><p>Bertha, ame-o, seja dele, entregue-se a ele se você deseja — ou se</p><p>puder.</p><p>bertha</p><p>(num devaneio) Eu vou ficar.</p><p>richard</p><p>Adeus.</p><p>[Ele solta a mão dela e sai rapidamente pela direita. bertha fica</p><p>sentada. Depois se levanta e caminha com timidez até a varanda.</p><p>Para junto à porta e depois de certa hesitação chama na direção</p><p>do jardim.]</p><p>bertha</p><p>Tem alguém aí?</p><p>[Ao mesmo tempo ela recua para o centro do cômodo. Em</p><p>seguida chama de novo da mesma maneira.]</p><p>bertha</p><p>Tem alguém aí?</p><p>[robert aparece na porta aberta que leva ao jardim. Está com o</p><p>paletó abotoado e a gola erguida. Ele segura o batente com as</p><p>mãos, de leve, e espera até que bertha o veja.]</p><p>bertha</p><p>(percebendo sua presença, se assusta; depois com suavidade)</p><p>Robert!</p><p>robert</p><p>Você está sozinha?</p><p>bertha</p><p>Estou.</p><p>robert</p><p>(olhando para a porta da direita) Cadê ele?</p><p>bertha</p><p>Foi embora. (nervosa) Você me assustou. De onde você veio?</p><p>robert</p><p>(indica com a cabeça) Lá de fora. Ele não te disse que eu estava ali</p><p>— esperando?</p><p>bertha</p><p>(rápida) Disse, disse sim. Mas fiquei com medo, aqui sozinha. Com</p><p>a porta aberta, esperando. (vai até a mesa e descansa a mão no</p><p>canto do móvel) Por que você está parado assim aí na porta?</p><p>robert</p><p>Por quê? Eu também estou com medo.</p><p>bertha</p><p>Do quê?</p><p>robert</p><p>De você.</p><p>bertha</p><p>(baixa os olhos) Você me odeia agora?</p><p>robert</p><p>Eu tenho medo de você. (juntando as mãos nas costas, tranquilo,</p><p>mas com certo tom de desafio) Medo de uma nova tortura — de</p><p>uma nova armadilha.</p><p>bertha</p><p>(como antes) Do que você está me acusando?</p><p>robert</p><p>(adianta-se alguns passos, para; depois impulsivamente) Por que</p><p>você me incentivou? Dia após dia, cada vez mais. Por que não me</p><p>deteve? Você podia — com uma simples palavra. Mas nem mesmo</p><p>uma palavra! Esqueci de mim mesmo, e dele. Você viu. Viu que eu</p><p>estava me destruindo aos olhos dele, perdendo a amizade dele.</p><p>Você queria isso?</p><p>bertha</p><p>(erguendo os olhos) Você nunca me perguntou.</p><p>robert</p><p>Nunca perguntei o quê?</p><p>bertha</p><p>Se ele suspeitava — ou sabia.</p><p>robert</p><p>E você teria me contado?</p><p>bertha</p><p>Sim.</p><p>robert</p><p>(hesitante) Você contou a ele… tudo?</p><p>bertha</p><p>Contei.</p><p>robert</p><p>Eu estou falando de… detalhes.</p><p>bertha</p><p>Tudo.</p><p>robert</p><p>(com um sorriso forçado) Sei. Você estava conduzindo um</p><p>experimento para ele. Comigo. Bem, por que não? Parece que eu</p><p>fui uma boa cobaia. Ainda assim, foi um tanto cruel da sua parte.</p><p>bertha</p><p>Tente me entender, Robert. Você precisa tentar.</p><p>robert</p><p>(com um gesto educado) Bom, vou tentar.</p><p>bertha</p><p>Por que você continua aí parado na porta? Estou ficando nervosa de</p><p>te olhar.</p><p>robert</p><p>Estou tentando entender. E estou com medo.</p><p>bertha</p><p>(estende a mão) Não precisa ter medo.</p><p>[robert vai rapidamente até ela e pega sua mão.]</p><p>robert</p><p>(acanhado) Vocês riam de mim — juntos? (retirando a mão) Mas</p><p>agora preciso me comportar, senão vocês podem rir de mim de novo</p><p>— hoje à noite.</p><p>bertha</p><p>(perturbada, põe a mão no braço dele) Por favor, me escute,</p><p>Robert… Mas você está todo molhado, encharcado! (passa a mão</p><p>no paletó dele) Ah, coitado! Ficou na chuva esse tempo todo!</p><p>Esqueci esse detalhe.</p><p>robert</p><p>(ri) Sim, você esqueceu de como estava o clima.</p><p>bertha</p><p>Mas você está encharcado de verdade. Precisa trocar de paletó.</p><p>robert</p><p>(segura as mãos dela) Me diga, é pena, então, o que você sente por</p><p>mim, como ele — como Richard — diz?</p><p>bertha</p><p>Por favor, troque de paletó, Robert, estou pedindo. Você pode pegar</p><p>um resfriado</p><p>bem forte. Faça isso, por favor.</p><p>robert</p><p>Que diferença faria agora?</p><p>bertha</p><p>(olhando em volta) Onde você guarda as suas roupas aqui?</p><p>robert</p><p>(aponta para a porta dos fundos) Ali. Devo ter um paletó aqui.</p><p>(maliciosamente) No meu quarto.</p><p>bertha</p><p>Pois então vá tirar esse paletó.</p><p>robert</p><p>E você?</p><p>bertha</p><p>Eu fico aqui te esperando.</p><p>robert</p><p>Você ordena que eu vá?</p><p>bertha</p><p>(rindo) Sim, eu ordeno.</p><p>robert</p><p>(sem titubear) Então eu vou. (vai rapidamente na direção da porta</p><p>do quarto; então se vira) Você não vai embora?</p><p>bertha</p><p>Não, eu fico esperando. Mas não demore.</p><p>robert</p><p>Só um minutinho.</p><p>[Ele entra no quarto e não fecha a porta. bertha olha curiosamente</p><p>em torno e depois, indecisa, dá uma olhada para a porta do</p><p>fundo.]</p><p>robert</p><p>(no quarto) Você não foi embora?</p><p>bertha</p><p>Não.</p><p>robert</p><p>Eu estou no escuro aqui. Tenho que acender a luminária.</p><p>[Ouve-se que ele acende um fósforo e coloca a cúpula de vidro na</p><p>luminária. Uma luz rosada vem da porta. bertha olha rapidamente</p><p>para o relógio em sua pulseira e depois senta-se à mesa.]</p><p>robert</p><p>(como antes) Gostou do efeito da luz?</p><p>bertha</p><p>Gostei, sim.</p><p>robert</p><p>Você consegue admirar o efeito de onde você está?</p><p>bertha</p><p>Consigo, perfeitamente.</p><p>robert</p><p>Foi para você.</p><p>bertha</p><p>(confusa) Eu não mereço nem isso.</p><p>robert</p><p>(de maneira articulada, ríspida) Trabalhos de amor perdidos.24</p><p>bertha</p><p>(levantando-se, nervosa) Robert!</p><p>robert</p><p>Sim.</p><p>bertha</p><p>Venha rápido aqui! Rápido!</p><p>robert</p><p>Já estou pronto.</p><p>[Ele aparece à porta, trajando um paletó de veludo verde-escuro.</p><p>Vendo sua agitação, ele vai rápido até ela.]</p><p>robert</p><p>O que foi, Bertha?</p><p>bertha</p><p>(trêmula) Fiquei com medo.</p><p>robert</p><p>De ficar sozinha?</p><p>bertha</p><p>(segura as mãos dele) Você sabe do que eu estou falando. Os meus</p><p>nervos estão em frangalhos.</p><p>robert</p><p>De que eu…?</p><p>bertha</p><p>Prometa, Robert, que não vai nem pensar numa coisa dessa.</p><p>Nunca. Se você gosta um pouco que seja de mim. Naquele</p><p>momento eu pensei…</p><p>robert</p><p>Que ideia!</p><p>bertha</p><p>Mas prometa, se gosta de mim.</p><p>robert</p><p>Se eu gosto de você, Bertha! Prometo. Claro que prometo. Você</p><p>está tremendo toda.</p><p>bertha</p><p>Deixe eu sentar em algum lugar. Já vai passar.</p><p>robert</p><p>Minha pobre Bertha! Sente-se aqui. Venha.</p><p>[Ele a leva até uma cadeira perto da mesa. Ela senta. Ele fica de</p><p>pé a seu lado.]</p><p>robert</p><p>(depois de uma breve pausa) Passou?</p><p>bertha</p><p>Passou. Foi só um momento. Fui muito boba. Fiquei com medo de…</p><p>queria te ver perto de mim.</p><p>robert</p><p>Medo de… do que você me fez prometer sem pensar?</p><p>bertha</p><p>Sim.</p><p>robert</p><p>(penetrante) Ou de outra coisa?</p><p>bertha</p><p>(perdida) Robert, eu tive medo de alguma coisa. Não sei bem do</p><p>quê.</p><p>robert</p><p>E agora?</p><p>bertha</p><p>Agora você está aqui. Eu posso te ver. Agora passou.</p><p>robert</p><p>(resignado) Passou. Sim. Trabalhos de amor perdidos.</p><p>bertha</p><p>(olha para ele) Escute, Robert. Quero te explicar tudo isso. Eu não</p><p>podia enganar o Dick. Nunca. Em nada. Contei tudo para ele —</p><p>desde o começo. Depois aquilo foi se prolongando; mesmo assim</p><p>você não abriu a boca nem me perguntou. Eu queria que você</p><p>perguntasse.</p><p>robert</p><p>Isso é verdade, Bertha?</p><p>bertha</p><p>É, porque me incomodava você poder pensar que eu era como…</p><p>como as outras que eu imagino que você tenha conhecido desse</p><p>jeito. Acho que o Dick também tem razão. Segredos para quê?</p><p>robert</p><p>(delicadamente) Ainda assim, segredos podem ter seu sabor. Não</p><p>podem?</p><p>bertha</p><p>(sorri) Podem, eu sei que podem. Mas, sabe, eu não podia esconder</p><p>do Dick. Além do mais, para quê? Essas coisas sempre acabam</p><p>aparecendo. Não é melhor as pessoas ficarem sabendo?</p><p>robert</p><p>(com delicadeza e certa timidez) Como é que você conseguiu,</p><p>Bertha, contar tudo a ele? E contou mesmo? Absolutamente tudo</p><p>que se passou entre nós?</p><p>bertha</p><p>Sim. Tudo que ele perguntou.</p><p>robert</p><p>E ele perguntou… muita coisa?</p><p>bertha</p><p>Você sabe como ele é. Ele faz perguntas sobre tudo. A torto e a</p><p>direito.</p><p>robert</p><p>Sobre o nosso beijo também?</p><p>bertha</p><p>Claro. Contei tudo.</p><p>robert</p><p>(balança devagar a cabeça) Que pessoazinha incrível. Você não</p><p>ficou com vergonha?</p><p>bertha</p><p>Não.</p><p>robert</p><p>Nem um pouco?</p><p>bertha</p><p>Não. Por quê? Isso é muito terrível?</p><p>robert</p><p>E como ele encarou? Me diga. Eu também quero saber tudo.</p><p>bertha</p><p>(ri) Ele ficou excitado. Mais do que o normal.</p><p>robert</p><p>Por quê? Ele é excitável… ainda?</p><p>bertha</p><p>(sardônica) Sim, muito. Quando não está perdido na filosofia.</p><p>robert</p><p>Mais do que eu?</p><p>bertha</p><p>Mais do que você? (refletindo) Como eu posso responder? Acho</p><p>que vocês dois são.</p><p>[robert desvia o rosto e olha na direção da varanda, passando</p><p>pensativamente a mão, uma ou duas vezes, pelo cabelo.]</p><p>bertha</p><p>(com cuidado) Você está bravo comigo de novo?</p><p>robert</p><p>(rabugento) Você é que está comigo.</p><p>bertha</p><p>Não, Robert. Por que eu estaria?</p><p>robert</p><p>Porque eu te pedi para vir a este lugar. Tentei preparar a casa para</p><p>você. (aponta vagamente para uma e outra coisa) Uma sensação de</p><p>quietude.</p><p>bertha</p><p>(tocando o paletó dele com a ponta dos dedos) E isto aqui também.</p><p>O seu belo casaco de veludo.</p><p>robert</p><p>Também. Não vou guardar segredos.</p><p>bertha</p><p>Você me lembra alguém de uma pintura. Gostei de te ver assim…</p><p>Mas você não está com fome, está?</p><p>robert</p><p>(lúgubre) Estou. Foi um erro meu. Pedir que você viesse aqui.</p><p>Percebi isso no momento em que te olhei lá do jardim e vi você —</p><p>você, Bertha — parada aqui. (desamparado) Mas o que eu podia</p><p>fazer?</p><p>bertha</p><p>(tranquilamente) Isso porque outras já estiveram aqui?</p><p>robert</p><p>Sim.</p><p>[Ele dá alguns passos e se afasta dela. Uma rajada de vento faz</p><p>tremular a luz da luminária da mesa. Ele diminui um pouco o</p><p>pavio.]</p><p>bertha</p><p>(acompanhando-o com o olhar) Mas eu sabia antes de vir. Não</p><p>estou com raiva de você por causa disso.</p><p>robert</p><p>(dá de ombros) Afinal de contas, por que você ficaria com raiva de</p><p>mim? Você não tem raiva nem dele — pela mesma coisa, ou pior.</p><p>bertha</p><p>Ele mesmo te falou disso?</p><p>robert</p><p>Foi. Ele me contou. Todos se confessam uns com os outros aqui. O</p><p>que vai vem.</p><p>bertha</p><p>Eu tento esquecer.</p><p>robert</p><p>Isso não te incomoda?</p><p>bertha</p><p>Agora não. Só que eu não gosto de ficar pensando nisso.</p><p>robert</p><p>É simplesmente uma coisa animalesca, então? De pouca</p><p>importância?</p><p>bertha</p><p>Não me incomoda — agora.</p><p>robert</p><p>(olhando para ela por sobre o ombro) Mas há uma coisa que te</p><p>incomodaria muito e que você não tentaria esquecer.</p><p>bertha</p><p>O quê?</p><p>robert</p><p>(virando-se para ela) Se fosse não apenas uma coisa animalesca —</p><p>com essa ou aquela pessoa — por poucos momentos. Se fosse algo</p><p>refinado e espiritual — com apenas uma pessoa — com uma única</p><p>mulher. (sorri) E talvez animalesco também. Normalmente acaba</p><p>chegando a isso. Você tentaria esquecer e perdoar?</p><p>bertha</p><p>(brincando com a pulseira) Me incomodaria em quem?</p><p>robert</p><p>Em qualquer um. Em mim.</p><p>bertha</p><p>(calmamente) Você está falando do Dick.</p><p>robert</p><p>Eu disse em mim. Mas você ia tentar?</p><p>bertha</p><p>Você acha que eu ia me vingar? Por acaso Dick não é livre</p><p>também?</p><p>robert</p><p>(aponta para ela) Isso não vem do seu coração, Bertha.</p><p>bertha</p><p>(altiva) Vem, vem sim; ele que seja livre também. Ele também me</p><p>deixa livre.</p><p>robert</p><p>(insistente) E você sabe por quê? E entende? E gosta? E quer ser?</p><p>Isso te faz feliz? E te fez feliz? Sempre? Esse presente, essa</p><p>liberdade que ele te deu… há nove anos?</p><p>bertha</p><p>(encarando-o de olhos arregalados) Mas por que você está me</p><p>fazendo tantas perguntas, Robert?</p><p>robert</p><p>(estende as mãos para ela) Porque nesse caso eu teria outro</p><p>presente para te oferecer, um presente comum, simples — como eu.</p><p>Se você quiser saber, eu te conto.</p><p>bertha</p><p>(olhando para o relógio) O passado é passado, Robert. Acho melhor</p><p>eu ir agora. São quase nove horas.</p><p>robert</p><p>(impetuosamente) Não, não. Ainda não. Ainda há mais uma</p><p>confissão. Temos o direito de falar.</p><p>[Ele passa rapidamente pela frente da mesa e senta ao lado dela.]</p><p>bertha</p><p>(virando-se para ele, põe a mão esquerda em seu ombro) Sim,</p><p>Robert. Eu sei que você gosta de mim. Não precisa me dizer.</p><p>(bondosa) Não precisa confessar mais nada hoje.</p><p>[Uma rajada de vento entra pela varanda, com o som de farfalhar</p><p>das folhas. A luminária</p><p>bruxuleia rapidamente.]</p><p>bertha</p><p>(apontando por sobre o ombro dele) Olhe! Está alto demais.</p><p>[Sem se levantar, ele se inclina ligeiramente para a mesa e</p><p>diminui mais o pavio. A sala está na semiescuridão. A luz entra</p><p>com mais força pela porta do quarto.]</p><p>robert</p><p>O vento está aumentando. Vou fechar aquela porta.</p><p>bertha</p><p>(ouvindo) Não, ainda está chovendo. Foi só uma rajada.</p><p>robert</p><p>(toca o ombro dela) Me diga se o ar estiver frio demais para você.</p><p>(fazendo menção de se levantar) Vou fechar.</p><p>bertha</p><p>(detendo-o) Não. Eu não estou com frio. Além disso, eu já vou indo,</p><p>Robert. Preciso ir.</p><p>robert</p><p>(com firmeza) Não, não. Você não precisa fazer nada agora. Nós</p><p>fomos deixados aqui para isso. E você está errada, Bertha. O</p><p>passado não é passado. Ele está presente aqui e agora. O que eu</p><p>sinto por você é o mesmo agora e antes, porque antes… você</p><p>desdenhou esse sentimento.</p><p>bertha</p><p>Não, Robert. Não é verdade.</p><p>robert</p><p>(continuando) Desdenhou, sim. Foi algo que eu senti, sem saber,</p><p>durante esses anos todos — até agora. Mesmo enquanto eu vivia o</p><p>tipo de vida que você conhece e no qual não gosta de pensar — o</p><p>tipo de vida a que você me condenou.</p><p>bertha</p><p>Eu?</p><p>robert</p><p>Sim, quando você desdenhou o presente simples e comum que eu</p><p>tinha a te oferecer — e em vez disso aceitou o dele.</p><p>bertha</p><p>(olhando para ele) Mas você nunca…</p><p>robert</p><p>Não. Porque você tinha escolhido a ele. Eu percebi. Percebi na</p><p>primeira noite em que nos vimos, os três juntos. Por que você o</p><p>escolheu?</p><p>bertha</p><p>(curva a cabeça) Isso não é o amor?</p><p>robert</p><p>(continuando) E toda noite, quando nós dois — ele e eu — íamos</p><p>até aquela esquina para te ver, eu via e sentia. Lembra da esquina,</p><p>Bertha?</p><p>bertha</p><p>(como antes) Lembro.</p><p>robert</p><p>E quando você e ele iam dar uma volta juntos e eu seguia sozinho</p><p>pela rua, eu sentia. E quando ele me falava de você, e quando me</p><p>disse que ia embora — sobretudo ali.</p><p>bertha</p><p>Por que sobretudo ali?</p><p>robert</p><p>Porque foi ali que eu fui culpado da minha primeira traição a ele.</p><p>bertha</p><p>Robert, do que você está falando? A sua primeira traição ao Dick?</p><p>robert</p><p>(concorda com a cabeça) E não a última. Ele estava falando de você</p><p>e dele. De como seria a vida de vocês dois — livres e tudo mais.</p><p>Livres, sim! Ele nem te perguntou se você queria ir com ele.</p><p>(amargo) Não perguntou. E você foi mesmo assim.</p><p>bertha</p><p>Eu queria estar com ele. Você sabe… (erguendo a cabeça e</p><p>olhando para ele) Você sabe como nós éramos naquela época — o</p><p>Dick e eu.</p><p>robert</p><p>(sem prestar atenção) Eu o aconselhei a ir sozinho — a não te levar</p><p>junto —, a viver sozinho para ver se o que sentia por você era uma</p><p>coisa passageira que poderia acabar com a sua felicidade e com a</p><p>carreira dele.</p><p>bertha</p><p>Bem, Robert. Isso foi cruel da sua parte, comigo. Mas eu te perdoo,</p><p>porque você estava pensando na felicidade dele e na minha.</p><p>robert</p><p>(inclinando-se para mais perto dela) Não, Bertha, eu não estava. Foi</p><p>essa a minha traição. Eu estava pensando em mim — pensando</p><p>que você podia desistir dele quando ele estivesse longe, e ele, de</p><p>você. Aí eu teria te oferecido o meu presente. Agora você sabe o</p><p>que era. O presente comum e simples que os homens oferecem às</p><p>mulheres. Talvez não fosse o melhor. Melhor ou pior, teria sido seu.</p><p>bertha</p><p>(desviando o rosto) Ele não aceitou o seu conselho.</p><p>robert</p><p>(como antes) Não. E na noite em que vocês fugiram juntos — ah,</p><p>como fiquei feliz!</p><p>bertha</p><p>(segurando as mãos dele) Fique calmo, Robert. Eu sei que você</p><p>sempre gostou de mim. Por que não me esqueceu?</p><p>robert</p><p>(sorri com amargura) Como fiquei feliz enquanto eu voltava pelo cais</p><p>e via lá longe o barco iluminado que descia o rio escuro, levando</p><p>você para longe de mim! (num tom mais calmo) Mas por que você o</p><p>escolheu? Não gostava nem um pouco de mim?</p><p>bertha</p><p>Gostava. Gostava porque você era amigo dele. Vivíamos falando de</p><p>você. O tempo todo. Toda vez que você escrevia ou mandava</p><p>jornais ou livros para o Dick. E ainda gosto de você, Robert.</p><p>(olhando nos olhos dele) Nunca te esqueci.</p><p>robert</p><p>Nem eu te esqueci. Eu sabia que ia te ver de novo. Soube na noite</p><p>em que você foi embora que você ia voltar. Por isso eu escrevi e</p><p>trabalhei — para te ver de novo. Aqui.</p><p>bertha</p><p>E eu estou aqui. Você tinha razão.</p><p>robert</p><p>(lentamente) Nove anos. Nove vezes mais linda!</p><p>bertha</p><p>(sorrindo) Será? O que você vê em mim?</p><p>robert</p><p>(olhando fixo para ela) Uma senhora estranha e linda.</p><p>bertha</p><p>(quase enojada) Ah, por favor, não me chame disso!</p><p>robert</p><p>(com sinceridade) Você é mais. Uma jovem rainha linda.</p><p>bertha</p><p>(rindo subitamente) Ah, Robert!</p><p>robert</p><p>(falando mais baixo e se inclinando para mais perto dela) Mas você</p><p>não sabe que é um ser humano lindo? Você não sabe que tem um</p><p>corpo lindo? Lindo e jovem?</p><p>bertha</p><p>(solene) Um dia eu vou ficar velha.</p><p>robert</p><p>(balança a cabeça) Eu não consigo imaginar. Hoje você é jovem e</p><p>linda. Hoje você voltou para mim. (apaixonadamente) Quem sabe o</p><p>que será do amanhã? Eu posso nunca mais te rever ou nunca mais</p><p>te ver como vejo agora.</p><p>bertha</p><p>Isso te faria sofrer?</p><p>robert</p><p>(olha pela sala sem responder) Esta sala e esta hora foram feitas</p><p>para a sua chegada. Quando você se for — tudo terá ido.</p><p>bertha</p><p>(ansiosa) Mas você vai me ver de novo, Robert… como antes.</p><p>robert</p><p>(olha em cheio para ela) Para fazer com que ele — Richard — sofra.</p><p>bertha</p><p>Ele não sofre.</p><p>robert</p><p>(baixando a cabeça) Sofre. Sofre, sim.</p><p>bertha</p><p>Ele sabe que você e eu nos gostamos. Há algum mal?</p><p>robert</p><p>(levantando a cabeça) Não, nenhum mal. Por que não poderíamos?</p><p>Ele ainda não sabe o que eu sinto. Ele nos deixou sozinhos aqui</p><p>esta noite, a esta hora, porque deseja saber — ele deseja ser</p><p>libertado.</p><p>bertha</p><p>Do quê?</p><p>robert</p><p>(aproxima-se mais dela e aperta seu braço enquanto fala) De toda e</p><p>qualquer lei, Bertha, de todo e qualquer laço. A vida inteira ele</p><p>tentou se libertar. Rompeu todas as correntes, menos uma, e é esta</p><p>última que estamos prestes a romper, Bertha — você e eu.</p><p>bertha</p><p>(quase inaudível) Tem certeza?</p><p>robert</p><p>(ainda mais caloroso) Tenho certeza de que lei nenhuma criada pelo</p><p>homem é sagrada diante do impulso da paixão. (quase com fúria)</p><p>Quem nos fez apenas para uma pessoa? É um crime contra o nosso</p><p>próprio ser agirmos assim. Não há lei anterior ao impulso. Leis são</p><p>para os escravos. Bertha, diga o meu nome! Deixe eu ouvir a sua</p><p>voz dizer. Baixinho!</p><p>bertha</p><p>(baixinho) Robert!</p><p>robert</p><p>(põe um braço em volta dos ombros dela) Só o impulso pela</p><p>juventude e pela beleza não morre. (aponta para a varanda) Ouça!</p><p>bertha</p><p>(assustada) O quê?</p><p>robert</p><p>A chuva caindo. Chuva de verão sobre a terra. Chuva noturna. A</p><p>escuridão, o calor e a enxurrada da paixão. Hoje a terra está sendo</p><p>amada — amada e possuída. Com os braços do amante em volta</p><p>de si; e ela resta calada. Fale, meu amor!</p><p>bertha</p><p>(súbito se inclina para a frente e ouve com atenção) Silêncio!</p><p>robert</p><p>(ouvindo, sorri) Nada. Ninguém. Estamos sozinhos.</p><p>[Uma rajada de vento sopra pela varanda e se ouve o farfalhar</p><p>das folhas. A chama da luminária salta.]</p><p>bertha</p><p>(apontando para a chama) Olhe!</p><p>robert</p><p>Só o vento. Vem bastante luz do outro cômodo.</p><p>[Ele estende a mão pela mesa e apaga a luminária. A luz que vem</p><p>da porta do quarto atravessa o ponto em que eles estão. A sala</p><p>está bem escura.]</p><p>robert</p><p>Você está feliz? Me diga.</p><p>bertha</p><p>Eu vou indo, Robert. Está muito tarde. Se dê por satisfeito.</p><p>robert</p><p>(acariciando o cabelo dela) Ainda não, ainda não. Me diga, você me</p><p>ama um pouco?</p><p>bertha</p><p>Eu gosto de você, Robert. Acho você bom. (começando a se</p><p>levantar) Está satisfeito?</p><p>robert</p><p>(detendo-a, beija seu cabelo) Não vá, Bertha! Ainda há tempo. Você</p><p>também me ama? Eu esperei tanto tempo. Você ama a nós dois —</p><p>ele e eu também? Ama, Bertha? A verdade! Me diga. Me diga com</p><p>os olhos. Ou fale!</p><p>[Ela não responde. No silêncio, ouve-se a chuva cair.]</p><p>Terceiro ato</p><p>[Sala de estar da casa de richard rowan em Merrion. A porta</p><p>sanfonada à direita está fechada, e também as portas duplas que</p><p>dão para o jardim. As cortinas de veludo verde da janela da</p><p>esquerda estão fechadas. O cômodo</p><p>está na semiescuridão.</p><p>É de manhã cedo no dia seguinte. bertha está sentada à janela,</p><p>olhando por entre as cortinas. Usa um vestido folgado cor de</p><p>açafrão. Seu cabelo está penteado sem rigor, preso atrás das</p><p>orelhas e amarrado na altura do pescoço. Está com as mãos</p><p>dobradas no colo. Tem o rosto pálido e tenso.]</p><p>[brigid entra pela porta sanfonada da direita com um espanador e</p><p>um pano de pó. Está prestes a atravessar a sala, mas, ao ver</p><p>bertha, detém-se de repente e se persigna de modo instintivo.]</p><p>brigid</p><p>Credo, madame. Quase que eu tive um treco. Por que a senhora</p><p>levantou tão cedo?</p><p>bertha</p><p>Que horas são?</p><p>brigid</p><p>Passa das sete, madame. Faz tempo que a senhora está de pé?</p><p>bertha</p><p>Mais ou menos.</p><p>brigid</p><p>(aproximando-se dela) Foi pesadelo que acordou a senhora?</p><p>bertha</p><p>Eu passei a noite acordada. Aí levantei para ver o sol nascer.</p><p>brigid</p><p>(abre as portas duplas) Está um dia lindo agora depois daquela</p><p>chuvarada. (vira-se) Mas a senhora deve estar cansada, madame.</p><p>O que é que o patrão vai dizer da senhora me fazer uma coisa</p><p>dessa? (vai até a porta do escritório e bate) Seu Richard!</p><p>bertha</p><p>(olha para ela) Ele não está aí. Saiu faz uma hora.</p><p>brigid</p><p>Está lá na praia então?</p><p>bertha</p><p>Isso.</p><p>brigid</p><p>(vai até ela e se apoia no encosto da cadeira) A senhora está</p><p>preocupada com alguma coisa, madame?</p><p>bertha</p><p>Não, Brigid.</p><p>brigid</p><p>Não se preocupe mesmo. Ele sempre foi desse jeito, sempre saindo</p><p>à toa sozinho para algum lugar. Ele é uma criatura esquisita, o seu</p><p>Richard, sempre foi. Porque não tem cantinho dele que eu não</p><p>conheça. A senhora está preocupada porque ele anda ficando ali</p><p>(aponta para o escritório) quase a noite toda com os livros lá dele?</p><p>Deixa ele em paz. Ele vai voltar. Porque ele acha que o sol brilha no</p><p>rosto da senhora, madame.</p><p>bertha</p><p>(triste) Esse tempo passou.</p><p>brigid</p><p>(confidencialmente) E como eu hei de me lembrar daquele tempo —</p><p>quando ele arrastava a asa pra senhora. (senta ao lado de bertha;</p><p>numa voz mais baixa) A senhora sabia que ele me contava tudo da</p><p>senhora, e nada pra mãe dele, que descanse em paz? Das suas</p><p>cartas e tudo mais.</p><p>bertha</p><p>Como assim? Das minhas cartas para ele?</p><p>brigid</p><p>(encantada) Isso. Eu lembro direitinho dele sentado ali na mesa da</p><p>cozinha, balançando as pernas e matraqueando sem parar, falando</p><p>da senhora e dele e da Irlanda e de tudo quanto era travessura —</p><p>pra uma velha ignorante que nem eu. Mas ele foi sempre assim.</p><p>Mas se tivesse que encontrar uma pessoa das altas ele ficava ainda</p><p>mais das altas que elas. (olha de repente para bertha) Mas a</p><p>senhora agora está chorando? Ah, mas não chore. Tem muita coisa</p><p>boa ainda pela frente.</p><p>bertha</p><p>Não, Brigid, esse tempo só vem uma vez na vida. O resto da vida só</p><p>serve para você se lembrar desse tempo.</p><p>brigid</p><p>(fica calada por um momento, depois diz, bondosa) Quer uma xícara</p><p>de chá, madame? Ia fazer bem.</p><p>bertha</p><p>Ia mesmo. Mas o leiteiro ainda não chegou.</p><p>brigid</p><p>Não. O Archie me pediu para acordar ele antes do leiteiro passar.</p><p>Ele vai dar uma voltinha na carroça. Mas ainda sobrou uma xícara.</p><p>Eu fervo a água rapidinho. Quer um ovinho cozido também?</p><p>bertha</p><p>Não, obrigada.</p><p>brigid</p><p>Ou uma torradinha?</p><p>bertha</p><p>Não, Brigid, obrigada. Só uma xícara de chá.</p><p>brigid</p><p>(indo até a porta sanfonada) Não demora nada (para, muda de</p><p>direção e vai para a porta da esquerda) Mas primeiro tenho que</p><p>acordar o menino, senão vai dar rolo.</p><p>[Ela sai pela porta da esquerda. Depois de alguns momentos</p><p>bertha se levanta e vai até o escritório. Abre bem a porta e olha</p><p>para dentro. Pode-se ver um cômodo pequeno e desorganizado</p><p>com muitas estantes de livros e uma grande escrivaninha com</p><p>papéis e uma luminária apagada, e diante dela uma poltrona. Ela</p><p>fica parada à porta por algum tempo, depois fecha a porta sem</p><p>entrar no cômodo. Volta para sua cadeira junto da janela e senta.</p><p>archie, vestido como antes, entra pela porta da direita, seguido</p><p>por brigid.]</p><p>archie</p><p>(vai até ela e, erguendo o rosto para ganhar um beijo, diz) Buon</p><p>giorno, mamãe!</p><p>bertha</p><p>(dando-lhe um beijo) Buon giorno, Archie! (para brigid) Você pôs</p><p>outra blusa nele, por baixo desta?</p><p>brigid</p><p>Ele não deixou, madame.</p><p>archie</p><p>Eu não estou com frio, mamãe.</p><p>bertha</p><p>Eu falei que era pra pôr, não falei?</p><p>archie</p><p>Mas cadê esse frio todo?</p><p>bertha</p><p>(tira um pente de sua cabeça e penteia o cabelo do menino dos dois</p><p>lados) E ainda está com cara de sono.</p><p>brigid</p><p>Ele foi pra cama assim que a senhora saiu ontem de noite, madame.</p><p>archie</p><p>A senhora sabe, mamãe, ele vai me deixar segurar as rédeas.</p><p>bertha</p><p>(colocando de novo o pente em seu cabelo, dá um abraço no filho</p><p>de repente) Ah, mas que homem grandão, tocar uma carroça!</p><p>brigid</p><p>Bom, ele é doido por cavalo, isso lá é.</p><p>archie</p><p>(libertando-se) Eu vou fazer ele andar bem rápido. A senhora vai ver</p><p>pela janela, mamãe. Com o chicote. (faz o gesto de quem estala um</p><p>chicote e grita a plenos pulmões) Avanti!</p><p>brigid</p><p>Bater no coitado do cavalinho?</p><p>bertha</p><p>Vem aqui pra eu limpar a sua boca. (tira o lenço do bolso do vestido,</p><p>molha com a língua e limpa a boca dele) Você está todo gosmento,</p><p>coisinha mais suja.</p><p>archie</p><p>(repete, rindo) Gosmento! O que que é gosmento?</p><p>[Ouve-se o som de uma lata de leite batendo nas grades da</p><p>janela.]</p><p>brigid</p><p>(afasta as cortinas e olha para fora) Ele chegou!</p><p>archie</p><p>(rápido) Espera. Eu estou pronto. Tchau, mamãe! (dá um beijo</p><p>apressado nela e se vira para sair) O papai já acordou?</p><p>brigid</p><p>(segura o menino pelo braço) Anda de uma vez agora.</p><p>bertha</p><p>Se cuide, Archie, e não demore, senão não deixo você ir outra vez.</p><p>archie</p><p>Tudo bem. Olhe pela janela que a senhora me vê. Tchau.</p><p>[brigid e archie saem pela porta da esquerda. bertha se levanta e,</p><p>puxando ainda mais as cortinas, põe-se de pé à janela, olhando</p><p>para fora. Ouve-se abrir a porta da entrada; depois um leve</p><p>barulho de vozes e latas. A porta se fecha. Momentos depois, vê-</p><p>se bertha acenar alegre com a mão. brigid entra e fica atrás dela,</p><p>olhando por sobre seu ombro.]</p><p>brigid</p><p>Olha a pose dele! Sério que só.</p><p>bertha</p><p>(repentinamente se afastando de seu posto) Fique longe da janela.</p><p>Não quero ser vista.</p><p>brigid</p><p>Por quê, madame, o que foi?</p><p>bertha</p><p>(indo até a porta sanfonada) Diga que eu não levantei, que não</p><p>estou bem. Eu não posso receber ninguém.</p><p>brigid</p><p>(vai atrás dela) Quem é, madame?</p><p>bertha</p><p>(estacando) Espere um momento.</p><p>[Ela presta atenção. Ouve-se uma batida na porta da entrada.]</p><p>bertha</p><p>(fica em dúvida por um momento, então) Não, diga que eu estou.</p><p>brigid</p><p>(em dúvida) Aqui?</p><p>bertha</p><p>(apressadamente) Sim. Diga que acabei de levantar.</p><p>[brigid sai pela esquerda. bertha vai na direção das portas duplas</p><p>e mexe nervosa nas cortinas, como se estivesse ajeitando o pano.</p><p>Ouve-se abrir a porta da entrada. Em seguida beatrice justice</p><p>entra e, como bertha não se vira de pronto, fica parada, hesitante,</p><p>junto à porta da esquerda. Está vestida como antes e tem um</p><p>jornal na mão.]</p><p>beatrice</p><p>(avança rapidamente) Sra. Rowan, por favor, me desculpe vir numa</p><p>hora dessas.</p><p>bertha</p><p>(virando-se) Bom dia, srta. Justice. (vai na direção dela) Alguma</p><p>coisa errada?</p><p>beatrice</p><p>(nervosa) Não sei. É o que eu queria perguntar a vocês.</p><p>bertha</p><p>(olha com curiosidade para ela) A senhorita está sem fôlego. Não</p><p>quer sentar?</p><p>beatrice</p><p>(sentando-se) Obrigada.</p><p>bertha</p><p>(senta diante dela, apontando para o jornal dela) Alguma coisa no</p><p>jornal?</p><p>beatrice</p><p>(ri nervosa; abre o jornal) Sim.</p><p>bertha</p><p>Sobre o Dick?</p><p>beatrice</p><p>Sim. Está aqui. Um artigo longo, um editorial, do meu primo. A vida</p><p>inteira dele está aqui. A senhora quer ver?</p><p>bertha</p><p>(pega o jornal e abre) Onde está?</p><p>beatrice</p><p>No meio. O título é: “Um distinto irlandês”.</p><p>bertha</p><p>E é… a favor do Dick ou contra ele?</p><p>beatrice</p><p>(calorosamente) Ah, é a favor! Leia o que ele diz do sr. Rowan. Eu</p><p>sei que o Robert ficou até bem tarde na cidade para escrever.</p><p>bertha</p><p>(nervosa) Sim. A senhorita tem certeza?</p><p>beatrice</p><p>Tenho. Bem tarde mesmo. Eu ouvi quando ele chegou em casa. Já</p><p>passava bastante das duas da manhã.</p><p>bertha</p><p>(prestando atenção nela) A senhorita se assustou? Assim, de ser</p><p>acordada a essa hora da madrugada.</p><p>beatrice</p><p>Eu tenho sono leve. Mas sabia</p><p>que ele estava vindo da redação,</p><p>então… desconfiei que ele tivesse escrito um artigo sobre o sr.</p><p>Rowan e que por isso estivesse chegando tão tarde.</p><p>bertha</p><p>Que esperteza pensar nisso assim tão rápido!</p><p>beatrice</p><p>Bem, depois do que aconteceu ontem à tarde aqui — quero dizer,</p><p>do que o Robert disse, que o sr. Rowan tinha aceitado esse cargo.</p><p>Era mais do que natural eu pensar que…</p><p>bertha</p><p>Ah, sim. Claro.</p><p>beatrice</p><p>(apressadamente) Mas não foi isso que me assustou. É que logo</p><p>depois eu ouvi um barulho no quarto do meu primo.</p><p>bertha</p><p>(amassa o jornal entre as mãos, sem fôlego) Meu Deus! O que foi?</p><p>Me conte.</p><p>beatrice</p><p>(observadora) Por que isso deixa a senhora tão transtornada?</p><p>bertha</p><p>(afundando na cadeira com uma risada forçada) Sim, claro, que</p><p>tolice a minha. Estou com os nervos em frangalhos. E ainda dormi</p><p>muito mal. Por isso acordei tão cedo. Mas, me diga, o que houve</p><p>então?</p><p>beatrice</p><p>Só o barulho da valise dele sendo arrastada pelo chão. Depois ouvi</p><p>ele caminhando pelo quarto, assoviando baixinho. Depois fechando</p><p>a valise e prendendo as correias.</p><p>bertha</p><p>Ele vai embora!</p><p>beatrice</p><p>Foi isso que me assustou. Fiquei com medo que ele tivesse brigado</p><p>com o sr. Rowan e que o artigo fosse um ataque.</p><p>bertha</p><p>Mas por que eles teriam brigado? A senhorita percebeu alguma</p><p>coisa entre eles?</p><p>beatrice</p><p>Acho que sim. Certa frieza.</p><p>bertha</p><p>Recentemente?</p><p>beatrice</p><p>Há algum tempo.</p><p>bertha</p><p>(alisando o jornal) A senhorita sabe a razão?</p><p>beatrice</p><p>(hesitante) Não.</p><p>bertha</p><p>(depois de uma pausa) Bom, mas se o artigo é a favor dele, como a</p><p>senhorita está dizendo, eles não brigaram. (reflete por um momento)</p><p>Ainda mais se foi escrito ontem à noite.</p><p>beatrice</p><p>Sim. Eu comprei o jornal imediatamente para ver. Mas por que,</p><p>então, ele está indo embora tão de repente? Sinto que alguma coisa</p><p>está errada. Sinto que aconteceu alguma coisa entre eles.</p><p>bertha</p><p>E a senhorita lamentaria?</p><p>beatrice</p><p>Muito. Sabe, sra. Rowan, Robert é meu primo-irmão, e eu sentiria</p><p>muitíssimo se ele tratasse mal o sr. Rowan agora que ele voltou ou</p><p>se os dois tivessem uma briga séria, principalmente porque…</p><p>bertha</p><p>(brincando com o jornal) Porque…?</p><p>beatrice</p><p>Porque foi o meu primo que insistiu que o sr. Rowan voltasse. Tenho</p><p>esse peso na consciência.</p><p>bertha</p><p>Esse peso devia estar na consciência do sr. Hand, não é verdade?</p><p>beatrice</p><p>(sem convicção) Na minha também. Porque… eu falei do sr. Rowan</p><p>para o meu primo quando ele estava fora, e de certa forma fui eu…</p><p>bertha</p><p>(concorda lentamente com a cabeça) Entendi. E isso pesa na sua</p><p>consciência. Só isso?</p><p>beatrice</p><p>Acho que sim.</p><p>bertha</p><p>(quase alegre) Srta. Justice, parece que meu marido voltou à Irlanda</p><p>por sua causa.</p><p>beatrice</p><p>Por minha causa, sra. Rowan?</p><p>bertha</p><p>Sim, por sua causa. Devido às cartas que a senhorita escreveu para</p><p>ele e às suas conversas com o seu primo, como acaba de</p><p>mencionar. Não acha que a senhorita é a pessoa que o trouxe de</p><p>volta?</p><p>beatrice</p><p>(enrubescendo subitamente) Não. Eu não pensaria uma coisa</p><p>dessa.</p><p>bertha</p><p>(presta atenção nela por um momento, depois desvia o olhar) A</p><p>senhorita sabe que meu marido está escrevendo sem parar desde</p><p>que voltou.</p><p>beatrice</p><p>Verdade?</p><p>bertha</p><p>A senhorita não sabia? (aponta para o escritório) Ele passa quase a</p><p>noite toda lá dentro, escrevendo. Noites a fio.</p><p>beatrice</p><p>No escritório?</p><p>bertha</p><p>No escritório ou quarto. Dê o nome que quiser. Ele dorme ali</p><p>também, num sofá. Dormiu ali hoje. Posso mostrar, se a senhorita</p><p>não acredita em mim.</p><p>[Ela se levanta para ir até o escritório. beatrice começa a se</p><p>levantar rapidamente e faz um gesto de recusa.]</p><p>beatrice</p><p>Claro que acredito, sra. Rowan, se a senhora me diz.</p><p>bertha</p><p>(sentando novamente) Sim. Ele está escrevendo. E deve ser a</p><p>respeito de alguma coisa que entrou na vida dele recentemente —</p><p>depois que voltamos para a Irlanda. Alguma mudança. A senhorita</p><p>soube de alguma mudança que ocorreu na vida dele? (olha para ela</p><p>de maneira penetrante) Soube ou sentiu?</p><p>beatrice</p><p>(sustenta o olhar dela com firmeza) Sra. Rowan, não sou eu quem</p><p>deve responder. Se alguma mudança ocorreu na vida dele depois</p><p>que voltou, quem deve saber disso, sentir isso, é a senhora.</p><p>bertha</p><p>A senhorita também poderia saber. A sua intimidade com esta casa</p><p>é muito grande.</p><p>beatrice</p><p>Eu não sou a única pessoa íntima daqui.</p><p>[As duas se encaram com frieza, em silêncio, por alguns</p><p>momentos. bertha põe de lado o jornal e senta numa cadeira mais</p><p>perto de beatrice.]</p><p>bertha</p><p>(colocando a mão no joelho de beatrice) Então a senhorita também</p><p>me odeia?</p><p>beatrice</p><p>(com algum esforço) Eu? Odiar a senhora?</p><p>bertha</p><p>(insistente, mas delicada) Sim. A senhorita sabe o que significa isso,</p><p>odiar uma pessoa?</p><p>beatrice</p><p>Por que eu odiaria a senhora? Nunca senti ódio por ninguém.</p><p>bertha</p><p>Já sentiu amor por alguém? (põe a mão no pulso de beatrice) Me</p><p>diga. Sentiu?</p><p>beatrice</p><p>(com a mesma delicadeza) Sim. No passado.</p><p>bertha</p><p>Agora não?</p><p>beatrice</p><p>Não.</p><p>bertha</p><p>Consegue me dizer isso… sem mentir? Olhe para mim.</p><p>beatrice</p><p>(olha para ela) Sim, consigo.</p><p>[Breve pausa. bertha retira a mão e desvia o rosto algo</p><p>constrangida.]</p><p>bertha</p><p>A senhorita acabou de dizer que outra pessoa é íntima desta casa.</p><p>Estava se referindo a seu primo? Era ele?</p><p>beatrice</p><p>Sim.</p><p>bertha</p><p>E a senhorita não o esqueceu?</p><p>beatrice</p><p>(tranquila) Eu tentei.</p><p>bertha</p><p>(juntando as mãos) A senhorita me odeia. E acha que eu sou feliz.</p><p>Ah, se a senhorita soubesse o quanto está enganada!</p><p>beatrice</p><p>(balança a cabeça) Eu não sei.</p><p>bertha</p><p>Feliz! Se eu não entendo nada do que ele escreve, se não sou</p><p>capaz de ajudá-lo em nada, se às vezes nem entendo metade do</p><p>que ele me diz! Você conseguiria, e consegue. (agitada) Mas receio</p><p>por ele, receio por nós dois. (levanta-se de supetão e vai até a</p><p>escrivaninha) Ele não pode ir embora desse jeito. (tira um bloco de</p><p>papel da gaveta e escreve algumas linhas de maneira apressada)</p><p>Não, é impossível! Ele é louco de fazer uma coisa dessa? (virando-</p><p>se para beatrice) Ele ainda está em casa?</p><p>beatrice</p><p>(olhando espantada para ela) Está. A senhora escreveu pedindo</p><p>para ele vir até aqui?</p><p>bertha</p><p>(levanta-se) Escrevi. Vou mandar a Brigid levar. Brigid!</p><p>[Ela sai depressa pela porta da esquerda.]</p><p>beatrice</p><p>(olhando instintivamente na direção em que bertha saiu) Então é</p><p>verdade!</p><p>[Ela olha rápido para a porta do escritório de richard e segura a</p><p>cabeça com as mãos. Depois, recuperando-se, pega o papel da</p><p>mesinha, abre, tira um estojo de óculos da bolsa e, colocando os</p><p>óculos, baixa a cabeça para ler.</p><p>richard rowan entra, vindo do jardim. Está vestido como antes,</p><p>mas usa um boné de tecido e carrega uma bengala fina.]</p><p>richard</p><p>(fica parado à porta, observando-a por alguns instantes) Há</p><p>demônios (aponta para a praia) lá fora. Estavam tagarelando desde</p><p>cedo.</p><p>beatrice</p><p>(levanta-se imediatamente) Sr. Rowan!</p><p>richard</p><p>Pode confiar em mim. A ilha é repleta de sons.25 A sua também. É a</p><p>única maneira de poder te ver, ela dizia. E a voz dela. E a voz dele.</p><p>Mas, pode confiar em mim, são só demônios. Fiz o sinal da cruz de</p><p>cabeça para baixo e isso calou as vozes.</p><p>beatrice</p><p>(balbuciando) Eu vim, sr. Rowan, tão cedo assim porque… para lhe</p><p>mostrar isto… foi Robert quem escreveu… sobre o senhor… ontem</p><p>à noite.</p><p>richard</p><p>(tira o boné) Minha cara srta. Justice, acho que a senhorita me disse</p><p>ontem o motivo de ter vindo aqui, e eu nunca esqueço coisa alguma.</p><p>(indo até ela, estendendo a mão) Bom dia.</p><p>beatrice</p><p>(subitamente tira os óculos e põe o jornal nas mãos dele) Eu vim por</p><p>causa disto. É um artigo sobre o senhor. Robert escreveu ontem à</p><p>noite. Quer ler?</p><p>richard</p><p>(faz uma reverência) Agora? Mas claro.</p><p>beatrice</p><p>(olha desesperada para ele) Ah, sr. Rowan, eu sofro só de olhar</p><p>para o senhor.</p><p>richard</p><p>(abre o jornal e lê) Morte do Reverendíssimo Cônego Mulhall. É</p><p>isso?</p><p>[bertha aparece junto à porta da esquerda e fica ouvindo.]</p><p>richard</p><p>(vira uma página) Ah, sim, aqui está! “Um distinto irlandês”. (começa</p><p>a ler com uma voz mais alta e áspera do que se poderia esperar)</p><p>Não está entre os menores dos problemas que afrontam nossa terra</p><p>aquele que se refere à atitude dela para com seus filhos que, depois</p><p>de deixá-la</p><p>em seu momento de necessidade, viram-se agora</p><p>chamados de volta para ela, às vésperas da vitória há tanto</p><p>esperada desta terra, a ela que, na solidão e no exílio, eles</p><p>aprenderam enfim a amar. No exílio, dissemos, mas aqui há que se</p><p>fazer uma distinção. Há um exílio econômico e um espiritual. Há os</p><p>que a deixaram em busca do pão que sustenta os homens e há</p><p>outros, a bem da verdade seus filhos prediletos, que a trocaram por</p><p>outras paragens em busca do alimento do espírito que sustenta a</p><p>vida de uma nação de seres humanos. Aqueles que se recordam da</p><p>vida intelectual de Dublin há uma década terão muitas lembranças</p><p>do sr. Rowan. Algo daquela dura indignação que lacerava o</p><p>coração…</p><p>[Ele levanta os olhos do jornal e vê bertha parada à porta. Põe de</p><p>lado o jornal e olha para ela. Um longo silêncio.]</p><p>beatrice</p><p>(com algum esforço) Está vendo, sr. Rowan, seu dia finalmente</p><p>raiou. Até aqui. E o senhor pode ver que tem um amigo caloroso no</p><p>Robert, um amigo que o entende.</p><p>richard</p><p>Percebeu aquela pequena frase logo no começo, depois de deixá-la</p><p>em seu momento de necessidade?</p><p>[Ele olha de maneira penetrante para bertha, vira-se, vai para o</p><p>escritório, entra e fecha a porta.]</p><p>bertha</p><p>(falando como que para si própria) Eu abandonei tudo por ele,</p><p>religião, família, minha própria paz.</p><p>[Senta pesadamente numa poltrona. beatrice vai até ela.]</p><p>beatrice</p><p>(sem vigor) Mas a senhora também não sente que as ideias do sr.</p><p>Rowan…</p><p>bertha</p><p>(com amargura) Ideias e mais ideias! Mas as pessoas neste mundo</p><p>têm outras ideias, ou fingem ter. Elas são obrigadas a aturar o</p><p>Richard apesar das ideias dele, porque ele consegue fazer alguma</p><p>coisa. Eu, não. Eu não sou nada.</p><p>beatrice</p><p>A senhora fica ao lado dele.</p><p>bertha</p><p>(cada vez mais amarga) Ah, bobagem, srta. Justice! Eu sou apenas</p><p>uma coisa com que ele se enroscou, e o meu filho é… o nome</p><p>simpático que dão a essas crianças. A senhorita acha que eu sou de</p><p>pedra? Acha que não enxergo o que dizem os olhos e os modos</p><p>deles quando me encontram?</p><p>beatrice</p><p>Não deixe fazerem a senhora se sentir inferior, sra. Rowan.</p><p>bertha</p><p>(altiva) Inferior! Eu sinto muito orgulho de mim, se a senhorita quer</p><p>saber. O que foi que eles fizeram por ele? Eu fiz dele um homem. O</p><p>que eles são na vida dele? Nada mais que a sujeira da sola da bota</p><p>dele! (levanta-se e caminha agitada de um lado para outro) Ele pode</p><p>me desprezar também, como os outros — agora. E a senhorita pode</p><p>me desprezar. Mas nenhum de vocês me fará sentir inferior.</p><p>beatrice</p><p>Por que a senhora me acusa?</p><p>bertha</p><p>(indo impulsivamente até ela) Eu estou sofrendo tanto… Me</p><p>desculpe se fui rude. Quero ser sua amiga. (estende as mãos) Você</p><p>aceita?</p><p>beatrice</p><p>(segurando as mãos dela) De bom grado.</p><p>bertha</p><p>(olhando para ela) Como são lindos os seus cílios, tão compridos! E</p><p>os seus olhos têm uma expressão tão triste!</p><p>beatrice</p><p>(sorrindo) Eu enxergo muito pouco com eles. São muito fracos.</p><p>bertha</p><p>(calorosamente) Mas são lindos.</p><p>[Ela lhe dá um abraço delicado, e um beijo. Depois se afasta um</p><p>pouco, tímida. brigid entra pela porta da esquerda.]</p><p>brigid</p><p>Entreguei em mãos, madame.</p><p>bertha</p><p>Ele mandou algum recado?</p><p>brigid</p><p>Ele estava de saída, madame. Disse pra eu falar que ele estava</p><p>vindo.</p><p>bertha</p><p>Obrigada.</p><p>brigid</p><p>(saindo) A senhora quer o chá e aquela torradinha agora, madame?</p><p>bertha</p><p>Agora não, Brigid. Talvez depois. Quando o sr. Hand chegar, faça</p><p>ele entrar imediatamente.</p><p>brigid</p><p>Sim, madame.</p><p>[Ela sai pela esquerda.]</p><p>beatrice</p><p>Eu vou indo, sra. Rowan, antes que ele chegue.</p><p>bertha</p><p>(um tanto tímida) Então somos amigas?</p><p>beatrice</p><p>(no mesmo tom) Vamos tentar ser. (virando-se) A senhora me</p><p>permite sair pelo jardim? Não quero encontrar meu primo agora.</p><p>bertha</p><p>Claro. (segura a mão dela) É tão estranho nós termos conversado</p><p>desse jeito agora há pouco. Mas eu sempre quis. Você não?</p><p>beatrice</p><p>Acho que eu também.</p><p>bertha</p><p>(sorrindo) Mesmo em Roma. Quando eu saía para caminhar com o</p><p>Archie, ficava pensando em você, em como você era, porque sabia</p><p>de você pelo Dick. Eu ficava olhando pessoas diferentes, saindo das</p><p>igrejas ou passando em carruagens, e pensando que talvez elas</p><p>fossem como você. Porque o Dick me disse que você era morena.</p><p>beatrice</p><p>(nervosa de novo) Verdade?</p><p>bertha</p><p>(segurando firme sua mão) Adeus então — por enquanto.</p><p>beatrice</p><p>(soltando a mão dela) Tenha um bom dia.</p><p>bertha</p><p>Eu a acompanho até o portão.</p><p>[Ela a acompanha, as duas saem pela porta dupla e depois pelo</p><p>jardim. richard rowan entra, vindo do escritório. Ele se detém junto</p><p>à porta dupla, olhando para o jardim. Em seguida, dá meia-volta,</p><p>vai até a mesinha, pega o papel e lê. bertha, depois de alguns</p><p>instantes, aparece junto à porta dupla e fica parada observando-o</p><p>ler. Ele larga o papel e se vira para voltar ao escritório.]</p><p>bertha</p><p>Dick!</p><p>richard</p><p>(detendo-se) O quê?</p><p>bertha</p><p>Você nem falou comigo.</p><p>richard</p><p>Não tenho nada a dizer. Você tem?</p><p>bertha</p><p>Você não quer saber… o que aconteceu ontem à noite?</p><p>richard</p><p>Isso jamais vou saber.</p><p>bertha</p><p>Eu te conto se você me perguntar.</p><p>richard</p><p>Você vai me contar. Mas eu jamais vou saber. Nunca nesta vida.</p><p>bertha</p><p>(indo até ele) Eu vou te dizer a verdade, Dick, como sempre te</p><p>disse. Eu nunca menti para você.</p><p>richard</p><p>(cerrando os punhos no ar, apaixonadamente) Sim, sim. A verdade!</p><p>Mas jamais vou saber, estou te dizendo.</p><p>bertha</p><p>Por que, então, você me deixou lá ontem à noite?</p><p>richard</p><p>(com amargura) Na sua hora de necessidade.</p><p>bertha</p><p>(ameaçadora) Você me incitou a ir. Não porque me ama. Se me</p><p>amasse ou soubesse o que é o amor, não teria me deixado lá. Você</p><p>me incitou por interesse próprio.</p><p>richard</p><p>Eu não me fiz. Eu sou o que sou.</p><p>bertha</p><p>Para ter isso para me jogar sempre na cara. Para fazer eu me sentir</p><p>inferior diante de você, como sempre fez. Para ter liberdade você</p><p>mesmo. (apontando para o jardim) Com ela! E isso é o seu amor!</p><p>Cada palavra que você pronuncia é falsa.</p><p>richard</p><p>(controlando-se) É inútil pedir que você me ouça.</p><p>bertha</p><p>Te ouvir! Ela é que é a pessoa que ouve. Por que perder tempo</p><p>comigo? Converse com ela.</p><p>richard</p><p>(concorda com a cabeça) Entendi. Agora você a afastou de mim,</p><p>como afastou todos que estiveram ao meu lado — cada amigo que</p><p>eu tive, cada ser humano que tentou se aproximar de mim. Você</p><p>sente ódio dela.</p><p>bertha</p><p>(calorosamente) Nada disso! Acho que você a tornou infeliz como a</p><p>mim e à sua falecida mãe, que morreu por isso. Um mata-mulheres!</p><p>Isso é o que você é.</p><p>richard</p><p>(vira-se para sair) Arrivederci!</p><p>bertha</p><p>(agitada) Ela é uma pessoa de bom caráter, elevado. Eu gosto dela.</p><p>Ela é tudo que eu não sou — por nascimento e educação. Você</p><p>tentou acabar com ela, mas não conseguiu. Porque ela está à sua</p><p>altura — ao contrário de mim. E você sabe disso.</p><p>richard</p><p>(quase gritando) Por que diabos você está falando dela?</p><p>bertha</p><p>(juntando as mãos) Ah, como eu queria nem ter te conhecido! Que</p><p>dia maldito aquele!</p><p>richard</p><p>(com amargura) Eu sou um empecilho, é isso? Você queria estar</p><p>livre agora. Pois é só dizer.</p><p>bertha</p><p>(altiva) Quando você quiser eu estou pronta.</p><p>richard</p><p>Para poder encontrar o seu amante… livremente?</p><p>bertha</p><p>Sim.</p><p>richard</p><p>Toda noite?</p><p>bertha</p><p>(com o olhar fixo à frente, falando com intensa passionalidade) Para</p><p>encontrar o meu amante! (estendendo os braços à frente) Meu</p><p>amante! Sim! Meu amante!</p><p>[Ela subitamente cai no choro e se afunda numa poltrona,</p><p>cobrindo o rosto com as mãos. richard se aproxima dela devagar</p><p>e toca seu ombro.]</p><p>richard</p><p>Bertha! (ela não responde) Bertha, você é livre.</p><p>bertha</p><p>(afasta a mão dele com um gesto rude e se põe de pé de repente)</p><p>Não encoste em mim! Você é um estranho para mim. Você não</p><p>entende nada de mim — nem uma única coisa no meu coração ou</p><p>na minha alma. Um estranho! Estou vivendo com um estranho!</p><p>[Ouve-se uma batida na porta da entrada. bertha enxuga rápido</p><p>os olhos com o lenço e ajeita a parte da frente do vestido. richard</p><p>presta atenção no som, olha para ela de maneira penetrante e,</p><p>dando-lhe as costas, entra em seu escritório.</p><p>robert hand entra pela esquerda. Está usando roupas marrom-</p><p>escuras e traz na mão um chapéu tirolês marrom.]</p><p>robert</p><p>(fechando silenciosamente</p><p>a porta depois de entrar) Você mandou</p><p>me chamar.</p><p>bertha</p><p>(levanta-se) Mandei. Você está louco, pensando em ir embora desse</p><p>jeito — sem nem passar aqui —, sem dizer nada?</p><p>robert</p><p>(indo até a mesa em que está o jornal, lança um olhar para ele) O</p><p>que eu tinha a dizer, eu disse aqui.</p><p>bertha</p><p>Quando você escreveu isso? Ontem à noite, depois que eu fui</p><p>embora?</p><p>robert</p><p>(com graciosidade) Para ser bem preciso, escrevi parte do texto —</p><p>mentalmente — antes de você sair. O resto — a pior parte —</p><p>escrevi depois. Bem mais tarde.</p><p>bertha</p><p>E conseguiu escrever ontem à noite!</p><p>robert</p><p>(dá de ombros) Eu sou um animal bem treinado. (aproxima-se dela)</p><p>Passei uma longa noite errante depois… na redação, na casa do</p><p>vice-reitor, num clube noturno, na rua, no meu quarto. A sua imagem</p><p>estava sempre diante dos meus olhos, a sua mão na minha mão.</p><p>Bertha, eu jamais vou esquecer a noite de ontem. (deixa o chapéu</p><p>na mesa e segura a mão dela) Por que não olha para mim? Não</p><p>posso encostar em você?</p><p>bertha</p><p>(aponta para o escritório) Dick está ali.</p><p>robert</p><p>(larga a mão dela) Nesse caso, crianças, comportem-se.</p><p>bertha</p><p>Para onde você vai?</p><p>robert</p><p>Terras estrangeiras. Ou seja, encontrar meu primo Jack Justice,</p><p>vulgo Doggy Justice, em Surrey. Ele tem uma bela casa de campo</p><p>lá, e o tempo é fresco.</p><p>bertha</p><p>Por que você está indo?</p><p>robert</p><p>(olha para ela em silêncio) Não consegue imaginar nem uma razão?</p><p>bertha</p><p>Por minha causa?</p><p>robert</p><p>Sim. Neste momento não é agradável para mim ficar por aqui.</p><p>bertha</p><p>(senta, desalentada) Mas é cruel da sua parte, Robert. Cruel comigo</p><p>e com ele também.</p><p>robert</p><p>Ele perguntou… o que aconteceu?</p><p>bertha</p><p>(juntando as mãos em desespero) Não. Ele se recusa a me</p><p>perguntar qualquer coisa. Diz que jamais vai saber.</p><p>robert</p><p>(solene, concorda com a cabeça) O Richard tem razão nisso. Ele</p><p>sempre tem razão.</p><p>bertha</p><p>Mas, Robert, você precisa conversar com ele.</p><p>robert</p><p>O que é que vou dizer a ele?</p><p>bertha</p><p>A verdade! Tudo!</p><p>robert</p><p>(reflete) Não, Bertha. Eu sou um homem falando com outro homem.</p><p>Não posso dizer tudo a ele.</p><p>bertha</p><p>Ele vai achar que você está indo embora porque tem medo de ficar</p><p>frente a frente com ele depois de ontem à noite.</p><p>robert</p><p>(depois de uma pausa) Bom, eu não sou mais covarde do que ele.</p><p>Eu converso com ele então.</p><p>bertha</p><p>(levanta-se) Eu vou chamar.</p><p>robert</p><p>(segurando as mãos dela) Bertha! O que aconteceu ontem à noite?</p><p>Qual é a verdade que devo dizer? (olha com sinceridade nos olhos</p><p>dela) Você foi minha naquela noite sagrada de amor? Ou eu sonhei?</p><p>bertha</p><p>(com um vago sorriso) Lembre esse sonho. Você sonhou que eu fui</p><p>sua ontem à noite.</p><p>robert</p><p>E a verdade é esta — um sonho? É isso que devo dizer?</p><p>bertha</p><p>Sim.</p><p>robert</p><p>(beija as mãos dela) Bertha! (numa voz mais baixa) Em toda a</p><p>minha vida, somente esse sonho é real. Eu esqueço o resto. (beija</p><p>de novo as mãos dela) Agora eu posso dizer a verdade para ele.</p><p>Pode chamar.</p><p>[bertha vai até a porta do escritório de richard e bate. Não há</p><p>resposta. Bate de novo.]</p><p>bertha</p><p>Dick! (nenhuma resposta) O sr. Hand está aqui. Ele quer falar com</p><p>você, para se despedir. Ele está indo embora. (nenhuma resposta.</p><p>Ela bate forte com a mão no painel da porta e chama com uma voz</p><p>preocupada) Dick! Responda!</p><p>[richard rowan sai do escritório. Vai imediatamente até robert, mas</p><p>não lhe estende a mão.]</p><p>richard</p><p>(calmo) Eu te agradeço pelo seu simpático artigo a meu respeito. É</p><p>verdade que você veio se despedir?</p><p>robert</p><p>Não há por que me agradecer, Richard. Eu sou e sempre fui seu</p><p>amigo. Agora mais do que nunca. Você acredita em mim, Richard?</p><p>[richard senta numa poltrona e enterra o rosto nas mãos. bertha e</p><p>robert se encaram em silêncio. Ela se vira e sai em silêncio pela</p><p>direita. robert vai até richard e para perto dele, descansando as</p><p>mãos no encosto de uma cadeira, olhando para ele. Um longo</p><p>silêncio. Ouve-se uma vendedora de peixes gritando ao passar</p><p>pela frente da casa.]</p><p>a peixeira</p><p>Arenque fresquinho da baía de Dublin! Arenque fresquinho da baía</p><p>de Dublin! Arenque fresquinho da baía de Dublin!</p><p>robert</p><p>(tranquilamente) Eu vou te dizer a verdade, Richard. Você está</p><p>ouvindo?</p><p>richard</p><p>(levanta a cabeça e se recosta para ouvir) Estou.</p><p>[robert senta na cadeira ao lado dele. A peixeira vai gritando cada</p><p>vez mais longe.]</p><p>a peixeira</p><p>Arenque fresquinho! Arenque da baía de Dublin!</p><p>robert</p><p>Eu fracassei, Richard. A verdade é essa. Você acredita em mim?</p><p>richard</p><p>Estou ouvindo.</p><p>robert</p><p>Eu fracassei. Ela é sua, como era nove anos atrás, quando você a</p><p>conheceu.</p><p>richard</p><p>Quando nós a conhecemos, você quer dizer.</p><p>robert</p><p>Sim. (baixa os olhos por alguns instantes) Posso continuar?</p><p>richard</p><p>Pode.</p><p>robert</p><p>Ela foi embora. Eu fiquei sozinho — pela segunda vez. Fui até a</p><p>casa do vice-reitor e jantei. Eu disse que você estava mal e que iria</p><p>numa outra noite. Soltei epigramas novos e antigos — aquele das</p><p>estátuas também. Bebi clarete. Fui para o meu escritório e escrevi</p><p>meu artigo. Depois…</p><p>richard</p><p>Depois?</p><p>robert</p><p>Depois fui a certo clube noturno. Havia homens lá — mulheres</p><p>também. Pelo menos pareciam mulheres. Eu dancei com uma</p><p>delas. Ela me pediu que a levasse em casa. Continuo?</p><p>richard</p><p>Sim.</p><p>robert</p><p>Eu a levei para casa num coche de aluguel. Ela mora perto de</p><p>Donnybrook.26 No coche ocorreu o que o arguto Duns Scotus</p><p>chama de morte do espírito. Continuo?</p><p>richard</p><p>Sim.</p><p>robert</p><p>Ela chorou. Disse que tinha se divorciado de um advogado. Eu lhe</p><p>ofereci um soberano,27 já que ela disse estar mal de dinheiro. Ela</p><p>não quis aceitar e chorou bastante. Depois bebeu água de melissa28</p><p>de uma garrafinha que levava na bolsa. Esperei até vê-la entrar em</p><p>casa. Depois fui a pé para casa. No quarto descobri que meu</p><p>casaco estava todo manchado de água de melissa. Ontem não tive</p><p>sorte nem com casacos: foi o segundo. Depois me ocorreu a ideia</p><p>de trocar de terno e partir no primeiro barco. Fiz a mala e fui deitar.</p><p>Vou pegar o próximo trem para a casa do meu primo Jack Justice,</p><p>em Surrey. Talvez por uns quinze dias. Talvez mais tempo. Está</p><p>entediado?</p><p>richard</p><p>Por que não ir de barco?</p><p>robert</p><p>Perdi a hora.</p><p>richard</p><p>Você pretendia ir sem se despedir — sem passar aqui?</p><p>robert</p><p>Sim.</p><p>richard</p><p>Por quê?</p><p>robert</p><p>Minha história não é muito bonita, não é verdade?</p><p>richard</p><p>Mas você veio.</p><p>robert</p><p>Bertha me mandou um bilhete pedindo para eu vir.</p><p>richard</p><p>Não fosse isso…?</p><p>robert</p><p>Não fosse isso eu não teria vindo.</p><p>richard</p><p>E te ocorreu que se você tivesse ido embora sem passar aqui eu</p><p>teria entendido a situação… à minha maneira?</p><p>robert</p><p>Sim, me ocorreu.</p><p>richard</p><p>No que, então, você quer que eu acredite?</p><p>robert</p><p>Quero que você acredite que eu fracassei. Que Bertha é sua agora</p><p>como era nove anos atrás, quando você, quando nós a</p><p>conhecemos.</p><p>richard</p><p>Você quer saber o que eu fiz?</p><p>robert</p><p>Não.</p><p>richard</p><p>Vim imediatamente para casa.</p><p>robert</p><p>Você não ouviu Bertha chegar?</p><p>richard</p><p>Não. Passei a noite escrevendo. E pensando. (apontando para o</p><p>escritório) Ali. Antes de amanhecer eu saí e caminhei de um</p><p>extremo a outro da praia.</p><p>robert</p><p>(balançando a cabeça) Sofrendo. Se torturando.</p><p>richard</p><p>Ouvindo vozes à minha volta. As vozes daqueles que dizem que me</p><p>amam.</p><p>robert</p><p>(aponta para a porta da direita) Uma. E a minha?</p><p>richard</p><p>Mais uma ainda.</p><p>robert</p><p>(sorri e toca a testa com o indicador da mão direita) Verdade. Minha</p><p>prima interessante mas algo melancólica. E o que elas te disseram?</p><p>richard</p><p>Elas me disseram para perder as esperanças.</p><p>robert</p><p>Maneira estranha de demonstrar o amor delas, eu diria! E você vai</p><p>perder as esperanças?</p><p>richard</p><p>(levantando-se) Não.</p><p>[Ouve-se um barulho na janela. O rosto de archie aparece</p><p>achatado contra um dos vidros. Ouve-se a voz dele chamando.]</p><p>archie</p><p>Abram a janela! Abram a janela!</p><p>robert</p><p>(olha para richard) Você também ouviu a voz dele, Richard, com as</p><p>outras? Lá na praia? A voz do seu filho? (sorrindo) Ouça! Como é</p><p>vazia de esperanças!</p><p>archie</p><p>Abram a janela, por favor!</p><p>robert</p><p>Talvez esteja ali, Robert, a liberdade que procuramos — você de</p><p>uma maneira, eu de outra. Nele e não em nós. Talvez…</p><p>richard</p><p>Talvez…?</p><p>robert</p><p>Eu disse talvez… Eu diria quase com certeza se…</p><p>richard</p><p>Se o quê?</p><p>contra a parede. Perto dela, uma cadeira de</p><p>vime. No centro do cômodo, uma mesa redonda. Poltronas de</p><p>veludo verde desbotado cercam a mesa. À direita, mais à frente,</p><p>uma mesa menor com artigos de tabacaria. Perto dela uma cadeira</p><p>estofada e uma poltrona. Um tapete de fibra de coco se estende</p><p>diante da lareira, ao lado da poltrona e na frente das portas. O piso</p><p>é de madeira tonalizada. A porta dupla no fundo e a porta sanfonada</p><p>à direita têm cortinas de renda que estão semicerradas. O painel</p><p>inferior da janela está levantado e a janela, coberta por pesadas</p><p>cortinas de veludo verde. O blecaute está abaixado até a borda do</p><p>painel inferior. É uma tarde agradável de junho, e o cômodo está</p><p>cheio de uma doce luz solar que vai sumindo.]</p><p>[brigid e beatrice justice entram pela porta da esquerda. brigid é</p><p>uma mulher de idade, compacta, com cabelo cinza férreo.</p><p>beatrice justice é uma morena magra de vinte e sete anos. Veste</p><p>um traje azul-marinho de boa alfaitaria e um chapéu preto de</p><p>palha, elegante e com uma fita simples, e carrega uma pequena</p><p>bolsa em formato de pasta.]</p><p>brigid</p><p>A patroa e o Archie estão na praia. Eles não estavam esperando. A</p><p>senhorita avisou que tinha voltado, srta. Justice?</p><p>beatrice</p><p>Não. Acabei de chegar.</p><p>brigid</p><p>(aponta para a cadeira estofada) Senta, que eu vou avisar pro</p><p>menino que a senhorita está aqui. Ficou muito tempo no trem?</p><p>beatrice</p><p>(sentando) Desde cedo.</p><p>brigid</p><p>O menino recebeu o seu postal lá da vista de Youghal.5 Aposto que</p><p>a senhorita está cansada.</p><p>beatrice</p><p>Ah, não. (tosse com certo nervosismo) Ele estudou piano na minha</p><p>ausência?</p><p>brigid</p><p>(ri calorosamente) Se estudou? Até parece! O nosso Archie? Ele</p><p>agora só quer saber é do cavalo do leiteiro. O tempo estava bom por</p><p>lá, srta. Justice?</p><p>beatrice</p><p>Mais para úmido, eu diria.</p><p>brigid</p><p>(compungida) Olha só. E vem chuva aqui também. (indo na direção</p><p>do escritório) Eu vou avisar pra ele que a senhorita chegou.</p><p>beatrice</p><p>O sr. Rowan está?</p><p>brigid</p><p>(aponta) No escritório. Está lá sofrendo com uma dessas coisas que</p><p>ele escreve. Passou quase a noite toda em claro. (saindo) Vou</p><p>chamar.</p><p>beatrice</p><p>Não o incomode, Brigid. Eu posso esperar eles voltarem se não for</p><p>demorar.</p><p>brigid</p><p>E eu vi alguma coisa na caixa de correio quando fui abrir a porta pra</p><p>senhorita. (vai até a porta do escritório, que entreabre, e anuncia)</p><p>Seu Richard, a srta. Justice chegou pra aula do Archie.</p><p>[richard rowan entra pela porta do escritório e vai na direção de</p><p>beatrice, estendendo a mão. É um homem alto e atlético, com</p><p>uma postura um tanto preguiçosa. Tem cabelo e bigode castanho-</p><p>claros e usa óculos. Veste um terno frouxo de um tweed cinza-</p><p>claro.]</p><p>richard</p><p>Bem-vinda.</p><p>beatrice</p><p>(levanta-se e aperta a mão dele, corando levemente) Boa tarde, sr.</p><p>Rowan. Eu não queria que a Brigid fosse incomodar o senhor.</p><p>richard</p><p>Mas que incômodo o quê! Ora veja!</p><p>brigid</p><p>Tem alguma coisa na caixa de correio, senhor.</p><p>richard</p><p>(tira um pequeno molho de chaves do bolso e entrega a ela) Pronto.</p><p>[brigid sai pela porta da esquerda e os ruídos que chegam</p><p>indicam que ela abriu e fechou a caixa de correio. Pausa breve.</p><p>Volta com dois jornais nas mãos.]</p><p>richard</p><p>Cartas?</p><p>brigid</p><p>Não, senhor. Só esses jornais da Itália.6</p><p>richard</p><p>Pode deixar na minha mesa, por favor.</p><p>[brigid lhe devolve as chaves, deixa os jornais no escritório, entra</p><p>de novo e sai pela porta sanfonada da direita.]</p><p>richard</p><p>Por favor, sente. Bertha volta logo.</p><p>[beatrice senta novamente na cadeira estofada. richard senta</p><p>junto da mesa.]</p><p>richard</p><p>Eu já estava achando que você não ia voltar mais. Já faz doze dias</p><p>que você esteve aqui.</p><p>beatrice</p><p>Eu também pensei nisso. Mas vim.</p><p>richard</p><p>Você pensou naquilo que eu te disse na última vez?</p><p>beatrice</p><p>Muito.</p><p>richard</p><p>Você deve ter percebido antes. Não percebeu? (ela não responde)</p><p>Acha que a culpa é minha?</p><p>beatrice</p><p>Não.</p><p>richard</p><p>Você acha que eu agi… mal com você? Não? Ou com outra</p><p>pessoa?</p><p>beatrice</p><p>(olha para ele com uma expressão triste e intrigada) Eu me fiz essa</p><p>pergunta.</p><p>richard</p><p>E a resposta?</p><p>beatrice</p><p>Não consegui responder.</p><p>richard</p><p>Se eu fosse pintor7 e te contasse que tinha um caderno com retratos</p><p>seus, você não ia achar tão estranho, não é verdade?</p><p>beatrice</p><p>Não é exatamente a mesma coisa, é?</p><p>richard</p><p>(com um sorriso ligeiro) Não exatamente. Eu também disse que não</p><p>ia te mostrar o que escrevi, a não ser que você pedisse para ver. E</p><p>então?</p><p>beatrice</p><p>Eu não vou pedir.</p><p>richard</p><p>(inclina-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos, mãos</p><p>juntas) Você ia gostar de ver?</p><p>beatrice</p><p>Muito.</p><p>richard</p><p>Porque é sobre você?</p><p>beatrice</p><p>Sim. Mas não só por isso.</p><p>richard</p><p>Porque fui eu que escrevi? É isso? Mesmo que o que você</p><p>encontrasse fosse às vezes cruel?</p><p>beatrice</p><p>(tímida) Isso também faz parte da sua mente.</p><p>richard</p><p>Então é a minha mente que te atrai? É isso?</p><p>beatrice</p><p>(hesitante, lança-lhe um breve olhar) Por que você acha que eu</p><p>venho aqui?</p><p>richard</p><p>Por quê? Muitos motivos. Para dar aulas ao Archie. Nós nos</p><p>conhecemos há tantos anos, desde crianças, você, o Robert e eu —</p><p>não é verdade? Você sempre se interessou por mim. Antes de eu ir</p><p>embora e enquanto estive longe. E aí as nossas cartas. Sobre o</p><p>meu livro. Agora ele está publicado. E mais uma vez eu estou aqui.</p><p>Talvez você sinta que alguma coisa nova está tomando forma no</p><p>meu cérebro. Talvez sinta que eu devia conhecer essa coisa nova. É</p><p>esse o motivo?</p><p>beatrice</p><p>Não.</p><p>richard</p><p>Então por quê?</p><p>beatrice</p><p>É a única maneira de te ver.</p><p>[Ela olha para ele por um instante e depois desvia rápido o rosto.]</p><p>richard</p><p>(depois de uma pausa, repete com ar de incerteza) É a única</p><p>maneira de você me ver?</p><p>beatrice</p><p>(subitamente confusa) Melhor eu ir embora. Eles não vão voltar.</p><p>(levantando-se) Sr. Rowan, eu preciso ir embora.</p><p>richard</p><p>(estendendo os braços) Mas você está fugindo! Fique. Me explique</p><p>o sentido dessas palavras. Você tem medo de mim?</p><p>beatrice</p><p>(deixa-se cair novamente) Medo? Não.</p><p>richard</p><p>Você confia em mim? Sente que me conhece?</p><p>beatrice</p><p>(de novo timidamente) É difícil conhecer os outros.</p><p>richard</p><p>Difícil me conhecer? Eu te mandei de Roma os capítulos do meu</p><p>livro à medida que eu ia escrevendo, e cartas. Por longos nove</p><p>anos. Bom, oito anos.</p><p>beatrice</p><p>Sim, levou quase um ano para a sua primeira carta chegar.</p><p>richard</p><p>Você respondeu imediatamente. E dali em diante acompanhou a</p><p>minha luta. (junta as mãos de maneira sincera) Me diga, srta.</p><p>Justice, você sentiu que o que estava lendo era escrito para os seus</p><p>olhos? Ou que você me inspirava?</p><p>beatrice</p><p>(balança a cabeça) Eu não preciso responder isso.</p><p>richard</p><p>E então?</p><p>beatrice</p><p>(fica um momento em silêncio) Eu não posso dizer. Você precisa me</p><p>perguntar, sr. Rowan.</p><p>richard</p><p>(com alguma veemência) Então, que eu expressei naqueles</p><p>capítulos e naquelas cartas e no meu caráter e na minha vida</p><p>também algo da sua alma que você não conseguia expressar —</p><p>orgulho ou desdém?</p><p>beatrice</p><p>Não conseguia?</p><p>richard</p><p>(inclina-se na direção dela) Não conseguia porque não ousava. É</p><p>esse o motivo?</p><p>beatrice</p><p>(curva a cabeça) Sim.</p><p>richard</p><p>Por causa dos outros ou por falta de coragem — qual dos dois?</p><p>beatrice</p><p>(baixinho) Coragem.</p><p>richard</p><p>(lentamente) E assim você me seguiu, com orgulho e também</p><p>desprezo no coração?</p><p>beatrice</p><p>E solidão.</p><p>[Ela apoia a cabeça na mão, desviando o rosto. richard se levanta</p><p>e caminha lentamente até a janela que fica à esquerda. Olha para</p><p>fora por alguns instantes, depois vai até Beatrice, até a poltrona e</p><p>senta perto dela.]</p><p>richard</p><p>Você ainda me ama?</p><p>beatrice</p><p>Eu nem sei mais.</p><p>richard</p><p>Era isso que me deixava tão reservado com você — naquela época</p><p>—, apesar de sentir o seu interesse por mim, apesar de sentir que</p><p>eu também fui alguma coisa na sua vida.</p><p>beatrice</p><p>Você foi.</p><p>richard</p><p>Vocês me separaram de vocês. Eu era uma terceira pessoa, era o</p><p>que eu sentia. Os nomes de vocês apareciam sempre juntos, Robert</p><p>e Beatrice, desde que consigo lembrar. Para mim e para todo</p><p>mundo parecia que…</p><p>beatrice</p><p>Nós somos primos. Não é estranho</p><p>robert</p><p>(com um vago sorriso) Se ele fosse meu.</p><p>[Ele vai até a janela e abre. archie pula afoito para dentro do</p><p>cômodo.]</p><p>robert</p><p>Como ontem, hein?</p><p>archie</p><p>Bom dia, sr. Hand. (corre para richard e lhe dá um beijo) Buon</p><p>giorno, babbo.29</p><p>richard</p><p>Buon giorno, Archie.</p><p>robert</p><p>Onde é que você estava, meu rapaz?</p><p>archie</p><p>Com o leiteiro. Eu segurei a rédea. A gente foi até Booterstown.30</p><p>(tira o boné e o joga numa cadeira) Estou morrendo de fome.</p><p>robert</p><p>(pega seu chapéu na mesa) Richard, adeus. (oferecendo a mão) Até</p><p>nosso próximo encontro!</p><p>richard</p><p>(levanta-se, aperta a mão dele) Adeus.</p><p>[bertha aparece à porta da direita.]</p><p>robert</p><p>(percebe que ela está ali: para archie) Pegue o boné. Venha comigo.</p><p>Eu vou te comprar um bolo e te contar uma história.</p><p>archie</p><p>(para bertha) Posso, mamãe?</p><p>bertha</p><p>Pode.</p><p>archie</p><p>(pega o boné) Estou prontinho.</p><p>robert</p><p>(para richard e bertha) Adeus ao papai e à mamãe. Mas não um</p><p>grande adeus.</p><p>archie</p><p>O senhor vai me contar uma história de fadas, sr. Hand?</p><p>robert</p><p>Uma história de fadas? Por que não? Eu sou o seu fado padrinho.</p><p>[Eles saem juntos pela porta dupla, atravessando o jardim. Depois</p><p>que se foram, bertha vai até richard e passa um braço pela cintura</p><p>dele.]</p><p>bertha</p><p>Dick, querido, agora você acredita que fui fiel a você? Ontem à noite</p><p>e sempre?</p><p>richard</p><p>(triste) Não me faça essa pergunta, Bertha.</p><p>bertha</p><p>(apertando mais o abraço) Eu fui, querido. Você não pode duvidar</p><p>de mim. Eu me entreguei a você — toda. Desisti de tudo por você.</p><p>Você me aceitou — e você me deixou.</p><p>richard</p><p>Quando foi que eu te deixei?</p><p>bertha</p><p>Você me deixou e eu fiquei esperando você voltar para mim. Dick,</p><p>querido, venha aqui ficar comigo. Sente. Como você deve estar</p><p>cansado!</p><p>[Ela o leva até a poltrona. Ele senta, quase reclinado, apoiado no</p><p>braço. Ela senta no tapete ao pé da poltrona, segurando a mão</p><p>dele.]</p><p>bertha</p><p>Sim, querido. Eu esperei por você. Céus, como sofri naqueles dias,</p><p>quando morávamos em Roma! Lembra o terraço da nossa casa?</p><p>richard</p><p>Lembro.</p><p>bertha</p><p>Eu ficava ali sentada, esperando, com o menino, coitadinho, com os</p><p>brinquedos, esperando até ele ficar com sono. Dava para ver todos</p><p>os telhados da cidade, e o rio, o Tevere. Como é o nome?</p><p>richard</p><p>Tibre.</p><p>bertha</p><p>(afagando o próprio rosto com a mão dele) Era lindo, Dick, só que</p><p>tão triste… Eu estava sozinha, Dick, esquecida por você e por todo</p><p>mundo. Parecia que a minha vida tinha chegado ao fim.</p><p>richard</p><p>Ela não tinha começado.</p><p>bertha</p><p>E eu ficava olhando o céu, tão lindo, sem uma nuvem, e aquela</p><p>cidade que você dizia que era tão antiga: e aí ficava pensando na</p><p>Irlanda e em nós.</p><p>richard</p><p>Em nós?</p><p>bertha</p><p>Sim. Em nós. Não passa um único dia sem eu pensar em nós, você</p><p>e eu, em como nós éramos quando nos conhecemos. Vejo isso</p><p>todos os dias da minha vida. Eu não fui fiel a você o tempo todo?</p><p>richard</p><p>(com um suspiro profundo) Foi, Bertha. Você foi minha noiva no</p><p>exílio.</p><p>bertha</p><p>Aonde você for, eu vou atrás. Se quiser ir embora neste momento,</p><p>eu vou com você.</p><p>richard</p><p>Eu vou ficar. Ainda é cedo para perder as esperanças.</p><p>bertha</p><p>(de novo afagando a mão dele) Não é verdade que eu quero afastar</p><p>todo mundo de você. Eu queria aproximar vocês — você e ele. Fale</p><p>comigo. Fale do fundo do seu coração: o que você sente e o que</p><p>você sofre.</p><p>richard</p><p>Eu estou machucado, Bertha.</p><p>bertha</p><p>Machucado como, meu amor? Me explique o que você quer dizer.</p><p>Vou tentar entender tudo que você disser. De que maneira você está</p><p>machucado?</p><p>richard</p><p>(desprende a mão e, segurando a cabeça de bertha entre as mãos,</p><p>ergue o queixo dela e a contempla longamente nos olhos) Eu tenho</p><p>uma ferida profunda, muito profunda, de dúvidas na alma.</p><p>bertha</p><p>(imóvel) Dúvidas sobre mim?</p><p>richard</p><p>Sim.</p><p>bertha</p><p>Eu sou sua. (num sussurro) Nem que eu morra neste exato</p><p>momento, sou sua.</p><p>richard</p><p>(ainda olhando para ela e como se falasse com alguém que não</p><p>está ali) Eu machuquei minha alma por você — uma ferida profunda</p><p>de dúvidas que jamais vai cicatrizar. Eu jamais posso saber, jamais</p><p>neste mundo. Não quero saber nem acreditar. Não me importa. Não</p><p>é nas trevas da crença que eu te desejo, mas na dúvida viva que</p><p>fere e não descansa. Prender você sem laços nem mesmo de amor,</p><p>estar unido a você de corpo e alma em total nudez — foi isso que</p><p>desejei. E agora estou cansado, Bertha. Meu ferimento me esgota.</p><p>[Ele se estica, exausto, na poltrona. bertha ainda segura a mão</p><p>dele, falando muito baixo.]</p><p>bertha</p><p>Me perdoe, Dick. Me perdoe e me ame de novo como me amou na</p><p>primeira vez. Eu quero meu amante. Estar com ele, ir a ele, me</p><p>entregar a ele. Você, Dick. Ah, meu amante estranho e louco, volte</p><p>para mim!</p><p>[Ela fecha os olhos.]</p><p>Notas preparatórias de James Joyce*</p><p>Richard — um automístico</p><p>Robert — um automóvel</p><p>*</p><p>A alma, como o corpo, pode ter uma virgindade. A mulher cedê-la,</p><p>ou o homem tomá-la, é esse o ato do amor. O amor (compreeendido</p><p>como o desejo pelo bem do outro) é na verdade um fenômeno tão</p><p>incomum que mal pode se repetir, já que a alma é incapaz de se</p><p>tornar virgem novamente e não tem energia bastante para se lançar</p><p>de novo no oceano de outra alma. É a consciência reprimida dessa</p><p>incapacidade e dessa falta de energia espiritual que explica a</p><p>paralisia mental de Bertha.</p><p>*</p><p>A idade dela: 28. Robert a compara à lua por causa de seu</p><p>vestido. Sua idade é a integralização de um ritmo lunar. Cf. Oriani31</p><p>sobre o fluxo menstrual — la malattia sacra che in un rituo lunare</p><p>prepara la donna per il sacrificio.32</p><p>*</p><p>Robert deseja que Richard empregue contra ele as armas que as</p><p>convenções sociais e a moral colocam nas mãos do marido. Richard</p><p>se recusa. Bertha deseja que Richard use essas armas também em</p><p>defesa dela. Richard igualmente se recusa, e pela mesma razão.</p><p>Sua defesa da alma e do corpo dela é uma espada invisível e</p><p>imponderável.</p><p>Como contribuição para o estudo do ciúme, o Othello de</p><p>Shakespeare é incompleto. Ele e a análise de Spinoza partem de</p><p>um ponto de vista de sensacionalismo — Spinoza fala de pudendis</p><p>et excrementis alterius jungere imaginem rei amatae.33 Bertha</p><p>considerou a própria paixão desligada do ódio ou da cobiça</p><p>frustrada. A definição escolástica do ciúme como passio irascibilis34</p><p>chega mais perto, tendo por objeto um bem de natureza difícil.</p><p>Nesta peça, o ciúme de Richard dá mais um passo na direção de</p><p>seu próprio núcleo. Separada do ódio e tendo sua cobiça frustrada</p><p>convertida em estímulo erótico e, mais ainda, tendo em seu poder a</p><p>restrição, a dificuldade que a excitou, ela precisa se revelar como a</p><p>própria imolação do prazer da posse, realizada no altar do amor. Ele</p><p>tem ciúme, deseja e conhece a própria desonra e a desonra da</p><p>mulher com cujo ser, em cada uma de suas fases, desejaria se ver</p><p>unido na realização do amor, na mesma medida em que realizar</p><p>essa união na região do difícil, do vácuo e do impossível é sua</p><p>necessária tendência.</p><p>*</p><p>Será difícil fazer Beatrice interessar a uma plateia em que todos</p><p>os homens são Robert e queriam ser Richard — ambos</p><p>pertencentes a Bertha. A nota de compaixão pode soar quando ela</p><p>tira os óculos do bolso para ler. Digam os críticos o que quiserem,</p><p>todas essas pessoas — inclusive Bertha — estão sofrendo durante</p><p>a ação.</p><p>*</p><p>Por que o título Exílios? Uma nação cobra uma pena daqueles</p><p>que ousaram deixá-la, que deve ser paga na volta. O irmão mais</p><p>velho na fábula do filho pródigo é Robert Hand. O pai ficou do lado</p><p>do pródigo. O mundo provavelmente não é assim — não na Irlanda,</p><p>com certeza. Mas o Reino de Jesus não era deste mundo, nem o</p><p>era sua sabedoria.</p><p>*</p><p>O estado em que Bertha se encontra quando abandonada</p><p>espiritualmente por Richard deve ser manifestado pela atriz com</p><p>características de uma hipnose. O estado dela é como o de Jesus</p><p>no jardim das oliveiras. É a alma de uma mulher deixada nua e só,</p><p>para que possa chegar à compreensão de sua própria natureza. Ela</p><p>deve parecer também ser levada até o último momento coerente</p><p>com sua imunidade à corrente da ação e deve até demonstrar uma</p><p>ponta de ressentimento contra o homem que se nega a lhe estender</p><p>a mão e salvá-la. Através dessas experiências ela vai impregnar seu</p><p>temperamento</p><p>renascido com o espanto de sua alma diante de sua</p><p>solidão e de sua beleza, formada e se dissolvendo eternamente</p><p>entre as nuvens da mortalidade.</p><p>1.</p><p>A fase secundária e inferior da posição de Robert é a suspeita de</p><p>que Richard seja um aventureiro ardiloso que usa o corpo de Bertha</p><p>como isca para ganhar a amizade e o apoio de Robert. A fase</p><p>correspondente na atitude de Richard é a suspeita de que a</p><p>admiração e a amizade que Robert sente por ele sejam simuladas</p><p>para atordoar e desorientar a vigilância de sua mente. Essas duas</p><p>suspeitas são impressas nos personagens por indícios externos e</p><p>em nenhum dos dois casos ganham vida de maneira espontânea,</p><p>brotando do solo da natureza deles.</p><p>*</p><p>É uma ironia da peça o fato de que, enquanto Robert, e não</p><p>Richard, é o apóstolo da beleza, a beleza em seu ser visível e</p><p>invisível esteja presente sob o teto de Richard.</p><p>*</p><p>Desde a publicação das páginas perdidas de Madame Bovary,35 o</p><p>centro de empatia parece ter sido esteticamente alterado do amante</p><p>ou objeto de desejo para o marido ou corno. Esse deslocamento</p><p>também se torna mais estável graças ao crescimento gradual de um</p><p>realismo prático coletivo, devido à alteração das condições</p><p>econômicas da massa de pessoas convocadas a ouvir e sentir uma</p><p>obra de arte em relação com a vida delas. Essa mudança é</p><p>empregada em Exílios, embora a união de Richard e Bertha seja</p><p>irregular na medida em que a revolta espiritual de Richard, que seria</p><p>estranha e nada bem-vinda de outra maneira, pode entrar num</p><p>combate com a decrépita prudência de Robert, tendo alguma</p><p>chance de disputar diante da plateia uma batalha empatada. Praga</p><p>em La Crisi36 e Giacosa em Tristi Amori37 compreenderam e se</p><p>beneficiaram dessa mudança, mas não a empregaram, como eu o</p><p>fiz aqui, como escudo técnico para a proteção de uma consciência</p><p>delicada, estranha e extremamente sensível.</p><p>2.</p><p>Robert está convicto da inexistência, da irrealidade de fatos</p><p>espirituais que existem e são reais para Richard. A ação da peça, no</p><p>entanto, deve convencer Robert da existência e da realidade da</p><p>mística defesa que Richard faz da esposa. Se essa defesa for real,</p><p>como podem ser irreais os fatos em que se baseia?</p><p>*</p><p>Seria interessante elaborar alguns esboços de Bertha caso ela</p><p>tivesse unido por nove anos sua vida à de Robert — não</p><p>necessariamente com drama, porém com esboços mais</p><p>impressionistas. Por exemplo, a sra. Robert Hand (porque ele queria</p><p>fazer tudo com decência) encomendando tapetes na Grafton</p><p>Street,38 nas corridas de Leopardstown,39 ganhando um assento na</p><p>plataforma para a inauguração de uma estátua, apagando as luzes</p><p>numa sala de estar depois de uma noitada social na casa do marido,</p><p>ajoelhada na frente de um confessionário na Igreja jesuíta.</p><p>*</p><p>Richard caiu de um mundo mais elevado e fica indignado quando</p><p>descobre baixeza em homens e mulheres. Robert ergueu-se de um</p><p>mundo inferior e se encontra tão distante da indignação que se vê</p><p>surpreso quando homens e mulheres não são mais baixos e mais</p><p>ignóbeis.</p><p>3.</p><p>robert</p><p>(concorda com a cabeça) Sim, você venceu. Eu vi o seu triunfo.</p><p>richard</p><p>(levantando-se de repente) Desculpa. Eu esqueci. Quer um</p><p>uísque?</p><p>robert</p><p>Quem espera sempre alcança.</p><p>[richard vai até o aparador e serve um copo de uísque do</p><p>decantador, levando-o com uma garrafinha d’água até a mesa.]</p><p>richard</p><p>(refestelado no sofá) Você vai pôr água no seu?</p><p>robert</p><p>(fazendo isso) E você?</p><p>richard</p><p>(balança a cabeça) Nada.</p><p>robert</p><p>(copo na mão) Lembro das nossas noitadas loucas de</p><p>antigamente, das nossas noites de festa, conversa e bebida.</p><p>richard</p><p>Na nossa casa.</p><p>robert</p><p>(erguendo o copo) Prosit!</p><p>*</p><p>Quando Richard abandonou a Igreja, encontrou muitos homens</p><p>do mesmo tipo de Robert.</p><p>*</p><p>Problema. Archie, o filho de Richard, está sendo criado com os</p><p>princípios de Robert.</p><p>*</p><p>Beatrice teve uma conversa com a mãe antes de entrar em cena</p><p>no primeiro ato.</p><p>*</p><p>Bertha se refere a Beatrice como “Sua Senhoria”.</p><p>*</p><p>N.(B) — 12 nov. 1913</p><p>Jarreteira: precioso, Prezioso,40 Bodkin,41 música, verde-claro,</p><p>bracelete, docinhos, lírio-do-vale, jardim do convento (Galway), mar.</p><p>Rato: Doença, nojo, pobreza, queijo, orelha feminina (orelha de</p><p>criança?).</p><p>Adaga: coração, morte, soldado, guerra, banda, julgamento, rei.</p><p>*</p><p>N.(B) — 13 nov. 1913</p><p>Lua — Túmulo de Shelley42 em Roma. Ele se levanta dali: louro.</p><p>Ela chora por ele. Ele lutou em vão por um ideal e morreu,</p><p>assassinado pelo mundo. No entanto se levanta. Cemitério em</p><p>Rahoon sob a luz do luar onde fica o túmulo de Bodkin. Ele está na</p><p>cova. Ela vê seu túmulo (mausoléu da família) e chora. O nome é</p><p>comum. O de Shelley é estranho e selvagem. Ele é moreno, não se</p><p>ergueu, morto pelo amor e pela vida, jovem. A terra o contém.</p><p>Bodkin morreu. Kearns morreu.43 No convento eles a chamavam</p><p>de mata-homem. (Mata-mulheres era um dos nomes que ela me</p><p>dava.) Eu vivo em corpo e alma.</p><p>Ela é terra, escura, sem forma, mãe, tornada bela pela noite</p><p>enluarada, com uma consciência sombria de seus instintos. Shelley,</p><p>que ela conteve em seu ventre ou em seu túmulo, se ergue; a parte</p><p>de Richard de que nem o amor nem a vida conseguem se livrar; a</p><p>parte pela qual ela o ama; a parte que ela precisa tentar matar,</p><p>jamais conseguir matar, e celebrar sua impotência. Suas lágrimas</p><p>são de adoração, Madalena vendo o Senhor reerguido no jardim</p><p>onde Ele tinha sido posto na tumba. Roma é o mundo estranho e a</p><p>vida estranha a que Richard a leva. Rahoon é sua gente. Ela chora</p><p>por Rahoon também, por aquele que seu amor assassinou, o</p><p>menino moreno que, como a terra, ela abraça na morte e na</p><p>desintegração. Ele é sua vida enterrada, seu passado. As imagens</p><p>que o acompanham são os badulaques e brinquedos de sua</p><p>meninice (bracelete, docinhos, lírio-do-vale verde-claro, o jardim do</p><p>convento). Os símbolos dele são a música e o mar, a terra líquida e</p><p>disforme em que estão enterrados, e o corpo e a alma afogados. Há</p><p>lágrimas de comiseração. Ela é a Madalena que chora relembrando</p><p>os amores a que não pôde corresponder.</p><p>*</p><p>Se Robert de fato prepara o caminho para a chegada de Richard</p><p>e torce por ela ao mesmo tempo que tenta secretamente combater</p><p>esse avanço ao destruir de um golpe a autoconfiança de Richard, a</p><p>posição é como a de Wotan, que, ao desejar o nascimento e o</p><p>crescimento de Sigried,44 deseja sua própria destruição. Cada</p><p>passo que, através de Richard, a humanidade dá é um retrocesso</p><p>para o tipo que Robert representa.</p><p>*</p><p>Richard teme a reação inevitável, dado o temperamento de</p><p>Robert: e não apenas por Bertha, ou seja, não para sentir que ao</p><p>sair de cena ele tenha permitido que ela siga seu caminho em</p><p>direção a um amor passageiro, e acabe sendo abandonada, mas</p><p>para sentir que uma mulher escolhida por ele foi deixada de lado em</p><p>troca de outro não escolhido por ele.</p><p>*</p><p>A mente de Beatrice é um templo frio abandonado em que hinos</p><p>subiram aos céus num passado distante, mas onde hoje um padre</p><p>trêmulo faz oferendas solitárias e reza, sem esperanças, ao</p><p>Altíssimo.</p><p>*</p><p>Richard, depois de entender pela primeira vez a natureza da</p><p>inocência ao perdê-la, teme acreditar que Bertha, para entender a</p><p>castidade de sua natureza, deva primeiro perdê-la em adultério.</p><p>*</p><p>Bolha — âmbar — prata — laranjas — maçãs — bengalinhas</p><p>doces — cabelo — pão de ló — hera — rosas — fita.</p><p>*</p><p>A bolha a faz lembrar da queimadura na mão quando menina. Ela</p><p>vê seu cabelo cor de âmbar e o de sua mãe, cor de prata. Essa</p><p>prata é a coroa da idade, mas também o estigma do cuidado e da</p><p>dor que ela e seu amante depuseram sobre a mãe. Essa avenida de</p><p>pensamentos é totalmente evitada; e o outro aspecto, âmbar feito</p><p>prata pelos anos, sua mãe como profecia do que ela um dia pode</p><p>ser, mal é contemplado. Laranjas, maçãs, bengalas doces — elas</p><p>tomam o lugar das ideias evitadas e são o que ela então era, por</p><p>serem suas alegrias infantis. Cabelo: a mente se volta outra vez</p><p>para isso sem perceber sua cor, percebendo apenas uma nítida</p><p>marca sexual e seu crescimento e seu mistério, mais do que a cor.</p><p>Símbolo de lento crescimento de sua meninice. Pão de ló, novo</p><p>relance de alegrias que agora começam a</p><p>parecer cada vez mais as</p><p>de uma criança e não de uma menina. Hera e rosas: ela colhia hera</p><p>com frequência quando saía à noite com as meninas. Rosas</p><p>cresciam naquele tempo. Súbita nota escarlate na memória que</p><p>pode ser uma vaga sugestão das rosas de seu corpo. A hera e as</p><p>rosas se estendem e sobem, a partir da ideia de crescimento,</p><p>através de uma rasteira vida vegetal até se tornarem ardente vida</p><p>flórea perfumada, símbolo da meninice de crescimento lento, seu</p><p>cabelo. A fita para o cabelo. Seu adequado ornamento para os olhos</p><p>dos outros, e por fim para os olhos dele. A meninice se torna</p><p>virgindade e enverga “a touca que é o sinal da vida pura”.45 Um</p><p>instinto altivo e tímido faz com que a mente dela se desvie do ato de</p><p>soltar o cabelo preso — por mais doce, desejado ou inevitável que</p><p>fosse — e ela abraça aquilo que é apenas dela e não dela e dele</p><p>também — felizes dias distantes de dança, distantes, para sempre</p><p>ausentes, morreram. Ou foram mortos? cf</p><p>*</p><p>robert</p><p>Você fez dela tudo que ela é. Uma personalidade estranha e</p><p>maravilhosa.</p><p>richard</p><p>(sombrio) Ou a matei.</p><p>robert</p><p>Matou?</p><p>richard</p><p>A virgindade da alma dela.</p><p>*</p><p>Richard não deve parecer um campeão dos direitos das</p><p>mulheres.46 Sua linguagem deve por vezes ficar mais próxima da de</p><p>Schopenhauer, contra as mulheres, e por vezes ele deve mostrar</p><p>um profundo desprezo pelo sexo de cabelo comprido e pernas</p><p>curtas. Na verdade está lutando com suas próprias mãos por sua</p><p>dignidade emocional e por sua libertação, na qual Bertha, nem mais</p><p>nem menos do que Beatrice ou do que qualquer outra mulher, está</p><p>envolvida. Ele não emprega a linguagem da adoração, e seu caráter</p><p>deve parecer algo desprovido de amor. Mas é um fato que por</p><p>quase 2 mil anos as mulheres da cristandade beijaram e rezaram</p><p>para a imagem nua de alguém que não tinha esposa nem amante</p><p>nem irmã e que mal poderia ser associado à mãe, não tivesse a</p><p>Igreja italiana, com seu infalível instinto pragmático, descoberto as</p><p>ricas possibilidades da figura da Madonna.</p><p>*</p><p>Neve:</p><p>geada; lua; figuras, azevinho e hera, bolo de groselha, limonada,</p><p>Emily Lyons,47 piano, peitoril;</p><p>lágrimas:</p><p>navio, luz do sol, jardim, tristeza, avental, bota de abotoar, pão</p><p>com manteiga, um grande fogo na lareira.</p><p>No primeiro, o fluxo de ideias é moroso. É Natal em Galway, uma</p><p>enluarada véspera de Natal com neve. Ela leva almanaques com</p><p>figuras à casa da avó, para serem ornamentados com azevinho e</p><p>hera. Passa as noites na casa de um amigo, onde lhe dão limonada.</p><p>Limonada e bolo de groselha são também o que sua avó lhe oferece</p><p>no Natal. Ela martela o piano e senta no peitoril com sua amiga</p><p>Emily Lyons, de tez escura e aparência de cigana.</p><p>No segundo, as ideias são mais céleres. É o cais do porto de</p><p>Galway numa manhã ensolarada. O navio dos emigrantes está</p><p>partindo e Emily, sua amiga morena, está no convés, a caminho da</p><p>América. Elas trocam beijos e choram amargamente. Mas ela</p><p>acredita que um dia sua amiga vai voltar como prometeu. Chora</p><p>pela dor da separação e pelos perigos marítimos que ameaçam a</p><p>menina que parte. A menina é mais velha que ela e não tem</p><p>namorado. Ela também não tem. Sua tristeza é breve. Está sozinha,</p><p>sem amigos, no jardim da avó e pode ver o jardim, agora solitário,</p><p>em que no dia anterior brincou com a amiga. Sua avó a consola, lhe</p><p>dá um avental novo e limpo e uma bota de abotoar, um presente do</p><p>tio, um bom pão com manteiga para comer e um grande fogo na</p><p>lareira diante do qual se sentar.</p><p>Saudade e arrependimento pelos dias mortos da meninice ficam</p><p>marcados de novo com vigor. Uma persistente e delicada</p><p>sensualidade (visual: figuras enfeitadas com azevinho e hera;</p><p>gustativa: bolo de groselha, pão com manteiga, limonada; tátil: sol</p><p>no jardim, um grande fogo na lareira, os beijos da amiga e da avó)</p><p>percorre ambas as séries de imagens. Uma persistente e delicada</p><p>vaidade também, mesmo em sua dor; seu avental e sua bota de</p><p>abotoar. Nenhum pensamento de uma admiração mais recente,</p><p>forte a ponto de se tornar fetichismo e que tenha sido bem</p><p>observado por ela, passa agora por sua mente. A bota sugere a</p><p>pessoa que a deu, seu tio, e ela sente vagamente os cuidados e</p><p>afetos esquecidos entre [os quais] cresceu. Pensa neles com</p><p>carinho, não por terem tido carinho por ela, mas por terem tido</p><p>carinho pela sua versão menina que agora não existe, e por serem</p><p>parte dela, escondida até dela mesma em sua memória. A nota de</p><p>arrependimento está sempre presente e por fim encontra voz nas</p><p>lágrimas que enchem seus olhos quando vê a amiga ir embora.</p><p>Uma partida. Uma amiga, sua própria juventude, indo embora. Leve</p><p>tom de lesbianismo se irradia em sua mente. Essa menina também</p><p>é morena, quase como uma cigana, e ela também, como o amante</p><p>moreno que dorme em Rahoon, está indo embora de sua vida, a</p><p>mata-homem e talvez também a mata-amante, por sobre o mar</p><p>negro que é a distância, a extinção do interesse e da morte. Elas</p><p>não têm amantes homens e movem-se vagamente uma na direção</p><p>da outra. A amiga é mais velha, mais forte, pode viajar sozinha,</p><p>mais corajosa, profecia de um homem moreno posterior. A</p><p>passividade de seu caráter diante de tudo que não seja vital à sua</p><p>existência, e no entanto uma passividade tomada de ternura. A</p><p>assassina está sozinha e quieta sob a delicada luz do sol e sob os</p><p>delicados cuidados e atenções de sua avó, feliz porque o fogo está</p><p>quente, aquecendo bastante seus dedos.</p><p>O que então são essa ternura e essa consideração que, dadas,</p><p>são morte, ou desconsolo, ou distância, ou a extinção do interesse?</p><p>Ela não sente remorsos, pois [sabe] o que pode dar quando lê o</p><p>desejo em olhos negros. Será que elas não têm necessidade disso,</p><p>se desejam e pedem? Recusar, seu coração lhe diz, seria matar de</p><p>maneira mais cruel e impiedosa aqueles que as ondas ou uma</p><p>doença, ou a passagem dos anos, vai seguramente levar embora de</p><p>sua vida, rumo à distância, à morte precoce e àquela extinção da</p><p>personalidade que é a morte em vida.</p><p>*</p><p>Na incerteza dos dois personagens femininos, Bertha leva a</p><p>vantagem da beleza — atrás da qual o caráter de uma mulher má</p><p>pode se esconder com segurança, e mais ainda um caráter que não</p><p>seja moralmente mau.</p><p>*</p><p>Segundo ato:</p><p>Bertha deseja a união espiritual de Richard e Robert e acredita (?)</p><p>que essa união se dará apenas através do corpo dela, e que assim</p><p>se perpetuará.</p><p>*</p><p>Richard aceita a atenção que Robert devota a Bertha, já que, ao</p><p>fazê-lo, ele a rouba de suas compatriotas e nelas se vinga, a si e a</p><p>seu amor proibido.</p><p>*</p><p>A peça são três atos de gato e rato.</p><p>*</p><p>A entrega do corpo de Bertha a Robert, repetida com frequência,</p><p>certamente colocaria os dois homens em contato quase carnal. Eles</p><p>desejam isso? Ser unidos, em termos carnais, através da pessoa e</p><p>do corpo de Bertha como não podem, sem descontentamento e</p><p>degradação, ver-se unidos homem com homem como homem com</p><p>mulher?</p><p>*</p><p>Exílios, também porque no fim ou Robert ou Richard deve ir para</p><p>o exílio — talvez a nova Irlanda não possa conter os dois. Robert</p><p>irá. Mas será que os pensamentos dela o seguirão ao exílio como os</p><p>de sua irmã-de-amor, Isolda, seguem Tristão?48</p><p>*</p><p>Todos acreditam que Bertha é amante de Robert. Essa crença vai</p><p>de encontro ao seu próprio conhecimento do que se passou; mas</p><p>ele aceita a crença como um alimento amargo.</p><p>*</p><p>Entre os amigos de Richard, Robert é o único que entrou na</p><p>mente de Richard pelo portão do afeto de Bertha.</p><p>*</p><p>A peça: uma troca de tapas entre o Marquês de Sade e Freiherr</p><p>vs. Sacher-Masoch.49 Não seria melhor Robert dar uma mordidinha</p><p>em Bertha quando eles se beijam? O masoquismo de Richard não</p><p>precisa de exemplos.</p><p>*</p><p>No último (ou segundo) ato, Robert pode sugerir também que</p><p>sabia desde o começo que Richard conhecia sua conduta e que</p><p>estava sendo observado, e que persistia porque precisava persistir e</p><p>porque desejava ver até onde iria a tolerância calada de Richard.</p><p>*</p><p>Bertha reluta em conceder à semente de Robert a hospitalidade</p><p>de seu ventre. Por esse motivo gostaria mais de um filho dele com</p><p>outra mulher do que de um filho dele com ela. Isso é verdade? Para</p><p>ele a questão de ter</p><p>ou não ter filhos é irrelevante. Será a relutância</p><p>dela em ceder (mesmo quando a possibilidade de um filho é</p><p>removida) essa mesma relutância ou uma sobrevivência dela? Ou</p><p>ainda a sobrevivência dos medos (puramente física) de uma</p><p>virgem? É certo que seu instinto sabe distinguir as concessões, e</p><p>para ela a suprema concessão é o que os padres da Igreja chamam</p><p>de emissio seminis inter vas naturale.50 Quanto à realização do ato</p><p>de maneira externa, por atrito ou pela boca, a questão deve ser</p><p>analisada mais a fundo. Permitiria ela que sua luxúria a levasse tão</p><p>longe, a ponto de receber a emissão da semente dele em qualquer</p><p>outra abertura do corpo onde ela não pudesse receber, depois de</p><p>emitida, a ação das forças de sua carne secreta?</p><p>*</p><p>Bertha está cansada e sente repulsa pela inquietude da energia</p><p>curiosa da mente de Richard, e sua fadiga é aliviada pela polidez</p><p>plácida de Robert.</p><p>*</p><p>A mente dela é uma grande cerração em meio à qual objetos</p><p>comuns — encostas, mastros de navios e ilhas estéreis — surgem</p><p>com contornos estranhos mas reconhecíveis.</p><p>*</p><p>O caráter sádico de Robert — seu desejo de infligir crueldade</p><p>como parte necessária do prazer sensual — transparece apenas, ou</p><p>principalmente, em seus contatos com mulheres para quem ele</p><p>nunca deixa de ser atrante por nunca deixar de ser agressivo. Com</p><p>os homens, no entanto, ele é manso e humilde de coração.</p><p>*</p><p>A Europa cansou das mulheres escandinavas (Hedda Gabler,</p><p>Rebecca Rosmer, Asta Allmers)51 que o gênio poético de Ibsen</p><p>criou quando as heroínas eslavas de Dostoiévski e Turguêniev</p><p>estavam perdendo o viço. Sobre que mulher vai agora brilhar a luz</p><p>da mente do poeta? Talvez finalmente na celta. Pergunta tola.</p><p>Enrole o cabelo como quiser e desenrole novamente como quiser.</p><p>*</p><p>Richard, inadequado para relações adúlteras com as esposas de</p><p>seus amigos porque isso envolveria grande parcela de pretensão de</p><p>sua parte, e não por estar convencido de qualquer anseio</p><p>desonroso, deseja, ao que parece, sentir a emoção do adultério de</p><p>maneira vicária e possuir uma mulher comprometida, Bertha,</p><p>através do órgão de seu amigo.</p><p>*</p><p>Bertha, no ponto mais alto da excitação no terceiro ato, reforça</p><p>suas palavras com a expressão “Céus”.</p><p>*</p><p>A dúvida que tolda o fim da peça deve ser transmitida à plateia</p><p>não apenas pelas perguntas de Richard, mas também pelo diálogo</p><p>entre Robert e Bertha.</p><p>*</p><p>Todos os filósofos celtas pareciam inclinados à incerteza ou ao</p><p>ceticismo — Hume, Berkeley, Balfour, Bergson.52</p><p>*</p><p>As notas preparadas para o diálogo são difusas demais. Precisam</p><p>passar pela peneira da ação. É possível que o melhor modo de</p><p>fazer isso seja esboçar o próximo ato (o Segundo) deixando que os</p><p>personagens se expressem. Não é necessário mantê-los presos à</p><p>expressão presente nas notas.</p><p>*</p><p>O maior perigo na escrita dessa peça é a ternura das falas ou dos</p><p>estados de espírito. No caso de Richard, ela não convence e, no</p><p>caso dos outros dois, é ambígua.</p><p>*</p><p>Durante o segundo ato, como Beatrice não está em cena, sua</p><p>figura deve aparecer para a plateia através das ideias ou das falas</p><p>dos outros. Isso não é nada fácil.</p><p>*</p><p>O personagem Archie no terceiro ato tem a leveza de Richard,</p><p>que transpareceu aqui e ali no primeiro e no segundo atos. No</p><p>entanto, como o afeto espiritual que Richard sente pelo filho</p><p>(também o sentimento filial por seu próprio pai) já foi devidamente</p><p>representado nos atos anteriores para equilibrar este, o amor de</p><p>Bertha pelo filho deve ser destacado com toda a força, vigor e</p><p>simplicidade, e com a maior precocidade possível no terceiro ato. E</p><p>deve, claro, estar sublinhado pela posição de tristeza em que ela se</p><p>encontra.</p><p>*</p><p>Talvez fosse bom fazer um esboço separado das ações de cada</p><p>uma das quatro pessoas centrais durante a noite, inclusive daqueles</p><p>cujos atos não se revelam ao público nos diálogos, ou seja, Beatrice</p><p>e Richard.</p><p>*</p><p>Robert gosta de ter em Richard uma personalidade à qual ele</p><p>possa prestar o tributo da mais plena admiração, ou seja, alguém a</p><p>quem não é necessário fazer sempre elogios relativizados e não</p><p>convincentes. Ele entende isso, equivocadamente, como reverência.</p><p>*</p><p>Um exemplo marcante da mudança de ponto de vista na literatura</p><p>sobre esse tema é Paul de Kock53 — seguramente um descendente</p><p>de Rabelais, Molière54 e da velha souche gauloise.55 Mas compare-</p><p>se George Dandin ou Le Cocu Imaginaire, de Molière, com Le</p><p>Cocu,56 daquele autor. Salacidade, humor, indecência, vivacidade</p><p>certamente não faltavam ao autor, no entanto ele produz uma</p><p>história longa, hesitante e dolorosa — e ainda escrita em primeira</p><p>pessoa. É claro que algo se rompeu no caminho.</p><p>*</p><p>O relacionamento entre a sra. O’Shea e Parnell57 não tem</p><p>importância vital para a Irlanda — primeiro, porque Parnell não</p><p>podia falar e, segundo, porque ela era inglesa. Os pontos do caráter</p><p>dele que de fato teriam interesse foram negligenciados de maneira</p><p>tácita. Ela não escreve à moda irlandesa — mais ainda, seu modo</p><p>de amar não é irlandês. O personagem O’Shea é mais típico da</p><p>Irlanda. Os dois maiores irlandeses dos tempos modernos — Swift e</p><p>Parnell — arruinaram suas vidas por causa de mulheres. E foi a</p><p>esposa adúltera do rei de Leinster58 quem primeiro trouxe os saxões</p><p>ao litoral da Irlanda.</p><p>* As notas de Joyce para Exílios foram escritas em um caderno que se encontra na</p><p>Universidade de Bufallo. Foram publicadas pela primeira vez em 1951.</p><p>Fragmentos de diálogos*</p><p>i</p><p>richard</p><p>Mas de tal maneira — como ladrões — à noite — em tal lugar. Não</p><p>é para gente como nós. Não é para mim nem para ela: não é nem</p><p>para você.</p><p>robert</p><p>Sim, você está certo. Você é muito jovem e mesmo assim parece</p><p>ser o pai dela, e o meu. Eu agi como um sujeito qualquer.</p><p>richard</p><p>Quando eu a conheci, ela tinha dezoito anos, e desde então eu a</p><p>observei. Senti o desdobrar da alma dela. Às vezes me viro para</p><p>olhar para ela no nosso quarto. Quando estou escrevendo, quero</p><p>dizer. Ela está deitada na cama lendo algum livro que eu dei — as</p><p>Cartas de Wagner ou um romance de Jacobsen.59 Ela fica lutando</p><p>para não dormir. Você diz que eu sou como o pai dela. Sabe o que</p><p>sinto quanto olho para ela?</p><p>robert</p><p>O quê?</p><p>richard</p><p>Como se tivesse carregado o corpo dela no meu, no meu ventre.</p><p>robert</p><p>E um homem consegue se sentir assim?</p><p>richard</p><p>Os livros dela, a música, o fogo do pensamento roubado do</p><p>altíssimo, de cujas chamas provieram toda a facilidade e toda a</p><p>cultura, a graça com que ela cuida do corpo que nós desejamos —</p><p>isso é obra de quem? Sinto que é minha. É minha obra e obra de</p><p>outros como eu agora ou em outros momentos. Fomos nós que a</p><p>concebemos e a demos à luz. Nossas mentes juntas como um rio</p><p>são o ventre em que a gestamos.</p><p>ii</p><p>richard</p><p>Você estava falando da sua infância. Desde a nossa infância os</p><p>nossos caminhos foram diferentes.</p><p>robert</p><p>(suspira) Ah, sim.</p><p>richard</p><p>Você pegou o caminho plano, aceitando ironicamente tudo em que</p><p>não acreditava e construindo para o seu corpo e para aquela função</p><p>do seu corpo que eu imagino que você chame de alma toda uma</p><p>paz de prudência, ironia e prazer.</p><p>robert</p><p>E essas coisas são ruins?</p><p>richard</p><p>Eu não as escolhi.</p><p>robert</p><p>Eu sei. Como estava no meu caráter escolher essas coisas, estava</p><p>no seu rejeitar.</p><p>richard</p><p>Eu vivi sem prudência, arriscando tudo, destruindo tudo, para criar</p><p>novamente.</p><p>robert</p><p>E você vai criar. Sinto que vai.</p><p>richard</p><p>Eu já fiz alguma coisa. Destruí e recriei à minha imagem e</p><p>semelhança uma mulher.</p><p>robert</p><p>Bertha?</p><p>richard</p><p>Eu a levei embora comigo para o exílio e agora, depois de anos, a</p><p>trago de volta novamente, refeita à minha imagem. E fiz isso por</p><p>você.</p><p>robert</p><p>Por mim?</p><p>richard</p><p>Sim, por você, que não correu riscos e viveu com prudência.</p><p>robert</p><p>(sorriso fraco) É um presente excêntrico, Richard, como o</p><p>presenteador. Claro que você percebe que eu não tenho a menor</p><p>intenção de aceitar. Não, você a transformou em algo novo e</p><p>estranho. Ela é sua. Fique com ela.</p><p>richard</p><p>Porque você tem a generosidade de me permitir?</p><p>iii</p><p>robert</p><p>Então o que você sentiu não foi ciúme.</p><p>richard</p><p>Eu senti o que estou te dizendo — um anseio.</p><p>robert</p><p>Nenhum ódio por</p><p>mim? Mas como?</p><p>richard</p><p>Até onde eu entendo, isso que você chama de ciúme pode ser esse</p><p>anseio.</p><p>iv</p><p>bertha</p><p>Não, obrigada, Brigid. Só uma xícara de chá já está ótimo.</p><p>brigid</p><p>Ou uma torradinha?</p><p>bertha</p><p>Não, obrigada.</p><p>brigid</p><p>Vai ver foram aquelas rainhas-cláudias de ontem que fizeram mal</p><p>pro seu estômago, madame. Tem gente que não pode com aquilo.</p><p>bertha</p><p>Deve ter sido.</p><p>[brigid sai.]</p><p>v</p><p>bertha</p><p>Queria nunca ter te conhecido.</p><p>richard</p><p>Você gostaria de ser mais livre do que é agora.</p><p>bertha</p><p>Sim.</p><p>richard</p><p>(sofrendo) Para poder ir com mais liberdade até aquela casa à noite,</p><p>para ver o seu amante.</p><p>bertha</p><p>(pondo os braços nos ombros dele) Isso, querido. Eu gostaria de</p><p>nunca ter te conhecido. Queria que você fosse o meu amante,</p><p>esperando lá por mim.</p><p>richard</p><p>Ou ele?</p><p>bertha</p><p>(balançando a cabeça) Você, querido. Quero te amar de novo.</p><p>Quero te esquecer. (dando um beijo nele) Me ame, Dick. Me</p><p>esqueça e me ame.</p><p>richard</p><p>Quem você esqueceu foi ele ou eu?</p><p>bertha</p><p>Não. Eu me lembro de você. Você tem um jeito diferente de se</p><p>entregar a uma mulher — um jeito mais bonito que o dele. (alisa o</p><p>cabelo de richard) Dick, nunca abrace aquela mulher como os</p><p>homens abraçam.</p><p>richard</p><p>Mulher? Quem?</p><p>bertha</p><p>Beatrice. Nunca. Deixe que ela sempre se lembre de você como eu</p><p>estou te vendo agora.</p><p>richard</p><p>E se isso acontecer você não vai sentir inveja dela?</p><p>bertha</p><p>Não. Quero que ela sempre se lembre de você, e sempre pense em</p><p>você. Mas não como as outras. Porque ela também é um bom tipo</p><p>de pessoa.</p><p>vi</p><p>robert</p><p>Ciúme. Não o dos homens comuns, é claro. (com um sorriso) O de</p><p>Richard Rowan.</p><p>richard</p><p>Eu me apaguei. Dei liberdade a vocês dois. Tentei me importar com</p><p>você e com ela, ter consideração pelos dois. Era só eu ter proibido</p><p>Bertha; e não proibi. Era só eu dizer a ela uma única palavra</p><p>delicada a respeito — a respeito da nossa vida passada; e eu não</p><p>disse. Deixei vocês dois livres.</p><p>robert</p><p>Por nós?</p><p>richard</p><p>Você acha que foi por mim?</p><p>robert</p><p>Você teria nos deixado livres naquela época — nove anos atrás?</p><p>richard</p><p>Você se encontrava sempre com ela naquela época, estando eu</p><p>presente ou não.</p><p>robert</p><p>Você teria nos dado a mesma liberdade naquela época? Responda.</p><p>richard</p><p>Se ela tivesse desejado você, eu teria deixado ela ficar com você.</p><p>Ela não desejou.</p><p>robert</p><p>(falando baixo) Não, não desejou. Se tivesse, você não teria deixado</p><p>ela ficar comigo. Pelo menos não é o jeito mais certo de dizer isso.</p><p>richard</p><p>(com simplicidade) Não?</p><p>robert</p><p>Você não teria que deixar; eu é que teria — nesse caso. Não tenho</p><p>razão?</p><p>richard</p><p>(vira-se para ele) Tem.</p><p>robert</p><p>(balança a mão) Isso é passado. Mas eu te pergunto: sabendo que</p><p>naquele momento ela era sua, você teria, naquele momento, nos</p><p>dado a liberdade que me deu agora — por nós?</p><p>richard</p><p>Naquele momento, não.</p><p>Robert</p><p>(apoia-se na mesa) Naquele momento, não. Porque naquele</p><p>momento você só tinha uma mulher no coração. É esse o motivo.</p><p>richard</p><p>Você acha que agora…?</p><p>robert</p><p>Sim, eu acho.</p><p>richard</p><p>Foi Bertha quem te contou?</p><p>robert</p><p>Eu estou dizendo isso sem ter ouvido. Eu conheço você e conheço</p><p>(aponta com o polegar por sobre o ombro) minha interessante mas</p><p>um tanto melancólica prima.</p><p>[Ele se recosta de novo na cadeira, sorrindo. richard se levanta</p><p>devagar e caminha de um lado para outro, mãos nas costas.]</p><p>vii</p><p>robert</p><p>(depois de um longo silêncio) As aparências estão contra mim.</p><p>richard</p><p>Você está dizendo que eu julgo pelas aparências?</p><p>robert</p><p>Estou dizendo que você não pode entrar na minha cabeça. Fui eu</p><p>que conquistei minha liberdade.</p><p>richard</p><p>Explique-se. Que liberdade?</p><p>robert</p><p>Vou explicar. De nós dois, quem tem liberdade sou eu. Nunca</p><p>acreditei nisso de verdade, nem mesmo na infância. Eu nunca</p><p>lamentei, como você, os meus pecados. Não sei o que é pecado.</p><p>Nunca acreditei nas verdades do homem ou da mulher. Eu mesmo</p><p>nunca fui verdadeiro. Acreditar no que ou em quem, se tudo é acaso</p><p>e transformação? Eu me libertei por dentro e por fora. Pouco me</p><p>importam os laços humanos ou legais, as leis e os preconceitos</p><p>morais. Pouco me importa até que a minha vida corresponda às</p><p>minhas ideias. Eu me guio pelas minhas descrenças. Nem mesmo</p><p>sinto a empolgação da revolta contra essas coisas. Essa é a minha</p><p>maior liberdade. É você, Richard, com todo esse talento, que ainda</p><p>é um escravo.</p><p>richard</p><p>(abalado mas calmo) Como conheço bem a voz da tentação!</p><p>robert</p><p>(aproximando-se mais dele) A voz da realidade. Ela não estava livre</p><p>nem mesmo ontem à noite. Estava coberta pela sombra do medo</p><p>que sente de você. A sua alma não está curada, Richard. Você a</p><p>feriu — uma profunda ferida de dúvida que nem mesmo as palavras</p><p>dela nem as minhas podem curar totalmente.</p><p>richard</p><p>Seguir lutando com dúvidas não é tão nobre quanto lutar com fé?</p><p>robert</p><p>Pode ser mais nobre. Eu ainda admiro o nobre amigo que você é, e</p><p>amo ainda mais esse amigo por enxergar que ele também é vítima</p><p>de um engano.</p><p>richard</p><p>Engano? Porque acredito em mim… e nela?</p><p>robert</p><p>Porque eu vejo, Richard, eu vejo que o seu tipo não é, como você</p><p>gostaria de acreditar, o tipo de humanidade que virá depois de nós.</p><p>richard</p><p>Mas você é esse tipo — é esse o seu engano?</p><p>robert</p><p>Não sou — não totalmente.</p><p>richard</p><p>Quem, então?</p><p>robert</p><p>Talvez… o seu filho. O seu filho sem crença, sem lei, sem medo.</p><p>richard</p><p>(lentamente) Archie!… E você?</p><p>Robert</p><p>Eu sou o padrinho dele.</p><p>[Ele pega seu chapéu, que estava na mesa.]</p><p>richard</p><p>(repete) Talvez.</p><p>robert</p><p>Eu disse talvez porque ele é seu. Podia dizer quase certamente</p><p>se…</p><p>richard</p><p>Se…?</p><p>robert</p><p>(com um sorriso) Se ele fosse meu.</p><p>viii</p><p>bertha</p><p>(passando o braço em volta da cintura dele) Eu fui fiel a você, Dick,</p><p>não fui?</p><p>richard</p><p>(sorrindo) Você sabe melhor que eu.</p><p>bertha</p><p>(desviando os olhos) Fui. Muito fiel. Eu me entreguei a você. Você</p><p>me aceitou e me deixou.</p><p>richard</p><p>Eu te deixei!</p><p>bertha</p><p>Você me deixou, e eu fiquei esperando você voltar para mim.</p><p>richard</p><p>(perturbado) Sim, entendo o que você quer dizer.</p><p>bertha</p><p>Ah, Dick, aquelas longas noites em Roma, o que eu tive que viver!</p><p>Lembra do terraço da casa onde a gente morou?</p><p>richard</p><p>Lembro.</p><p>bertha</p><p>Eu ficava sentada ali, esperando, com o coitadinho do nosso menino</p><p>brincando, esperando até ele ficar com sono. Dava para ver a</p><p>cidade toda, o sol se pondo e, bem embaixo de mim, o rio, o Tevere.</p><p>Como é o nome do rio? Eu já esqueci.</p><p>richard</p><p>Tibre.</p><p>bertha</p><p>Isso. Era lindo, Dick, só que eu estava tão triste… Estava sozinha,</p><p>esquecida por você e por todos. Você tinha se cansado de mim</p><p>porque eu era simples e inculta demais para uma pessoa como</p><p>você. Eu achava que a minha vida tinha acabado, e a sua também.</p><p>richard</p><p>Não tinha começado ainda.</p><p>bertha</p><p>E eu ficava olhando o céu, tão lindo, sem nuvens, e a cidade que</p><p>você dizia que era muito antiga. Só coisas elevadas e lindas. Mas</p><p>elas me faziam chorar.</p><p>richard</p><p>Por quê, querida?</p><p>bertha</p><p>Por eu ser tão inculta. Eu não sabia nada dessas coisas. E elas me</p><p>comoviam mesmo assim.</p><p>ix</p><p>richard</p><p>Eu também sofri.</p><p>bertha</p><p>Mas não como eu, Dick.</p><p>richard</p><p>Sim. Eu sei o que você sentiu. Que eu estava dando a uma outra</p><p>minhas partes mais requintadas, e a você só o que era grosseiro.</p><p>bertha</p><p>Eu não suportava isso. Eu tentava entender tudo da sua</p><p>personalidade estranha. Mas isso não.</p><p>richard</p><p>Eu via nos seus olhos. Um medo vago, o medo da vida. Eu ouvia na</p><p>sua voz o seu pasmo. Você estava se perguntando o que era aquilo</p><p>na vida, no próprio amor; e no seu coração você quase rezava para</p><p>que aquilo não viesse, e até que para que a vida ou o amor</p><p>morresse antes de aquilo chegar.</p><p>bertha</p><p>(apontando para o peito) Aqui, querido. No meu coração eu senti</p><p>alguma coisa se quebrando. Foi isso que você viu nos meus olhos.</p><p>richard</p><p>(pega a mão dela, que beija apaixonadamente) Ah, como eu te</p><p>amava! Minha noivinha! Minha noivinha no exílio!</p><p>bertha</p><p>Será que eu te sou útil na vida, querido, em alguma coisa?</p><p>richard</p><p>(rindo, balança a cabeça) Não, totalmente inútil!</p><p>bertha</p><p>Ah, fale! Eu quero saber.</p><p>x</p><p>bertha</p><p>Quando você me deu boa-noite, eu soube pela sua voz que você</p><p>queria ficar sozinho. Eu fiquei tão triste, Richard. Seus lábios,</p><p>quando você me</p><p>beijou, estavam tão macios e tão frios! Eu não</p><p>podia falar com você, como se o mundo estivesse entre nós. E</p><p>quando eu fui para a cama, sozinha no quarto, no silêncio, e vi a</p><p>lâmpada pequena acesa ali na cômoda fiquei pensando na minha</p><p>infância.</p><p>richard</p><p>(com ternura) Fale mais, meu amor.</p><p>bertha</p><p>Fiquei imaginando que eu estava no quarto em que eu dormia</p><p>quando era menina, que nunca tinha passado pelos braços de um</p><p>homem, que ainda era inocente e jovem. Eu era inocente quando te</p><p>conheci, Richard, não era?</p><p>richard</p><p>(tocando com os lábios a manga da roupa dela) Sempre, sempre.</p><p>bertha</p><p>Imaginei que eu estava naquele quarto e via o quarto, a pequena</p><p>lamparina de óleo queimando quieta perto da cama e que eu via o</p><p>retrato de Robert Emmett60 na parede. Sabe qual? O do uniforme</p><p>verde, sem chapéu, olhos escuros. Aí…</p><p>richard</p><p>E depois?</p><p>bertha</p><p>Depois pensei no Robert. Parecia que você tinha ido embora e que</p><p>não ia voltar pra mim nunca mais. Parecia que você não estava</p><p>pensando em mim, mas nela, e que talvez ele estivesse. Eu sentia</p><p>saudade de alguém.</p><p>richard</p><p>Como você pensou nele?</p><p>bertha</p><p>No nome, nos olhos e na voz dele quando diz o meu nome. Fiquei</p><p>feliz de pensar que ele dorme sozinho, e disse o nome dele em voz</p><p>baixa, pensando que talvez de alguma forma ele conseguisse me</p><p>ouvir.</p><p>richard</p><p>(anda um pouco de um lado para outro em silêncio, depois se</p><p>aproxima dela) Bertha!</p><p>bertha</p><p>O quê?</p><p>richard</p><p>Você sentiu que naquele momento estava começando a amar o</p><p>Robert? Me diga a verdade.</p><p>bertha</p><p>(com simplicidade) Não. Eu amava você.</p><p>richard</p><p>Mesmo naquele momento?</p><p>bertha</p><p>Eu sentia que tinha te perdido. Não conseguia entender o motivo.</p><p>Era inútil pensar o que aquilo significava. Você estava perdido para</p><p>mim.</p><p>xi</p><p>richard</p><p>O que você desejava aconteceu — e o que eu desejava. Nesse</p><p>caso, quando os acontecimentos foram determinados por nós, não</p><p>podemos culpá-los.</p><p>* Joyce deixou diversos fragmentos de diálogo escritos em folhas soltas. Como elas não</p><p>foram datadas, é impossível determinar se são mais antigas ou mais novas do que as</p><p>notas da Universidade de Bufallo. Os manuscritos pertencem à Universidade de Cornell e</p><p>sua primeira publicação ocorreu em 1964.</p><p>Notas de Exílios</p><p>1. Após o abalo da amizade com Oliver St. John Gogarty, o casamento do amigo Thomas</p><p>Kettle com Mary Sheehy e a intriga de Vincent Cosgrave a respeito de Nora Barnacle,</p><p>Joyce teria criado o personagem Robert Hand como uma associação desses três</p><p>homens. Um quarto ainda pode ter sido adicionado à personalidade de Robert: trata-se</p><p>do editor do jornal triestino Il Picollo della Sera, Roberto Prezioso, que em dado momento</p><p>se lançou a cortejar Nora. No início, Joyce achou isso estimulante para sua escrita</p><p>literária, mas acusou Prezioso de trair sua amizade quando os avanços sobre a mulher</p><p>se tornaram mais ousados. Richard Rowan, a contraparte de Robert, estaria mais</p><p>próximo do próprio Joyce (cf. Cronologia e o ensaio “Tornando-se exilados”, de Richard</p><p>Ellmann, em Sugestões de leitura).</p><p>2. Área privilegiada na costa de Dublin.</p><p>3. Área residencial no sul de Dublin, mais próxima do centro do que Merrion.</p><p>4. Ano da última visita de Joyce à Irlanda (cf. Cronologia).</p><p>5. Cidade balneária do condado de Cork.</p><p>6. Referências à Itália serão recorrentes na peça. Joyce escreveu Exílios em Trieste.</p><p>7. Gabriel Conroy pensa algo muito semelhante sobre Greta Conroy em “Os mortos”: “Se</p><p>fosse pintor ele a pintaria naquela atitude” (Dublinenses. Trad. de Caetano W. Galindo.</p><p>São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2018, p. 243).</p><p>8. Conventos são associados à religião católica. Beatrice é protestante.</p><p>9. Também na vida de Joyce a morte da mãe foi um evento que deixou marcas profundas.</p><p>O tema aparece na conversa entre Buck Mulligan e Stephen Dedalus já no primeiro</p><p>episódio de Ulysses.</p><p>10. Ópera de Georges Bizet (1838-75) composta em 1875.</p><p>11. Antes de 1971, ano em que a Irlanda e o Reino Unido adotaram o sistema monetário</p><p>decimal, doze pence equivaliam a um xelim, e vinte xelins equivaliam a uma libra.</p><p>12. Cidade costeira de Dublin rebatizada em 1920 como Dún Laoghaire.</p><p>13. Expressão alemã de origem latina que significa “à sua saúde”.</p><p>14. Possivelmente a praia de Merrion, próxima da residência do casal.</p><p>15. É difícil determinar o que Robert quer dizer com “estrangeiros escuros” (dark</p><p>foreigners); provavelmente é uma tentativa de se associar aos vikings ou a algum grupo</p><p>sem relação direta com a Inglaterra com o intuito de se apresentar como irlandês acima</p><p>de tudo.</p><p>16. Jonathan Swift (1667-1745), autor de Viagens de Gulliver (1726).</p><p>17. A traição foi o tema do primeiro poema de Joyce, “Et tu Healy”, escrito em 1891, e</p><p>aparece em seus poemas (cf. Cronologia e Notas desta edição).</p><p>18. Archibald Hamilton Rowan (1751-1834) foi um dos fundadores da Dublin Society of</p><p>United Irishmen [Sociedade dos Irlandeses Unidos de Dublin], um grupo reformista</p><p>protestante. Precisou exilar-se na França e nos Estados Unidos para escapar da prisão.</p><p>19. Cidade do Império Romano que foi palco da Batalha de Filipos (42 a.C.), ocorrida</p><p>depois que Júlio César foi assassinado por homens liderados por Brutus e Cássio.</p><p>20. Ópera de 1845, do compositor Richard Wagner (1813-83).</p><p>21. “Em suma” (italiano).</p><p>22. Referência ao comentário que o papa Gregório (c. 540-604) teria feito ao ver anglo-</p><p>saxões escravizados em Roma: “Non angli sed angeli”, isto é “Não anglos, mas anjos”. O</p><p>episódio teria inspirado Gregório a dar a Agostinho da Cantuária a missão de disseminar</p><p>a fé cristã entre os britânicos em 595.</p><p>23. John Duns Scotus (c. 1266-1308), filósofo escocês, professor e autor de escritos</p><p>teológicos. Ordenou-se padre em 1291. Segundo J. C. C. Mays, a expressão “morte do</p><p>espírito” não é de Scotus, e Joyce já teria se equivocado antes, inclusive chamando o</p><p>filósofo de irlandês (cf. obra de Joyce organizada por Mays em Sugestões de leitura).</p><p>24. Referência à comédia Love’s Labour’s Lost (1597), de William Shakespeare.</p><p>25. Referência a A tempestade (1611), de Shakespeare, em que Caliban diz: “The isle is</p><p>full of noises” (iii, ii). No texto da peça estabelecido por Keri Walsh (Oxford), Richard diz:</p><p>“The isle is full of voices”, com voices (vozes) no lugar de noises (sons); na edição de</p><p>Mays (Penguin), ele se expressa como Caliban.</p><p>26. Bairro de Dublin situado entre Ranelagh e Merrion.</p><p>27. Moeda de ouro no valor de uma libra.</p><p>28. Infusão de ervas de efeito restaurador.</p><p>29. Joyce era babbo (“papai” em italiano) para os filhos e nonno (“vovô” em italiano) para o</p><p>neto.</p><p>30. Bairro costeiro de Dublin situado ao sul de Merrion.</p><p>31. Alfredo Oriani (1852-1909), autor de La rivolta ideale (1908), onde se encontra a frase</p><p>citada.</p><p>32. A palavra rituo parece estar equivocada. A tradução poderia ser algo como “a doença</p><p>sagrada que num ritual lunar prepara a mulher para o sacrifício”. (n. t.)</p><p>33. Citação certamente feita de memória. Joyce altera a ordem da frase, mas mantém a</p><p>lógica da sentença latina: “Associar a imagem da coisa amada com as partes pudendas</p><p>e os fluidos de outro”. (n. t.)</p><p>34. “Paixão irascível.” (n. t.)</p><p>35. Joyce se refere aos cortes que Gustave Flaubert (1821-80) teve que fazer quando seu</p><p>romance saiu em folhetim.</p><p>36. Marco Praga (1862-1929), autor de La crisi (1901), peça que tem o adultério como</p><p>tema.</p><p>37. Giuseppe Giacosa (1847-1906), autor de Tristi amori (1888), peça que trata de uma</p><p>esposa que não cede ao adultério.</p><p>38. Rua de compras no centro de Dublin.</p><p>39. O Thom’s Official Directory de 1904, guia de endereços de Dublin muito usado por</p><p>Joyce durante a escrita de Ulysses, informava: “Existe agora um hipódromo em</p><p>Leopardstown”.</p><p>40. Roberto Prezioso (cf. nota 1).</p><p>41. Michael Bodkin (cf. nota ao poema “Ela chora por Rahoon”).</p><p>42. Percy Bysshe Shelley (1792-1822) foi um dos mais importantes poetas românticos</p><p>ingleses. Casou-se com Mary Wollstonecraft Shelley (née Godwin) (1797-1851), autora</p><p>de Frankenstein (1818). Morreu em um naufrágio. Seu corpo foi cremado e seus restos</p><p>transferidos para o Cemitério Protestante de Roma em 1823.</p><p>43. Possivelmente Michael Feeney, de</p><p>quem Nora tinha se enamorado antes de Michael</p><p>Bodkin. Como Bodkin, foi enterrado no Cemitério de Rahoon. Mays (cf. obra de Joyce</p><p>organizada por Mays em Sugestões de leitura) nos lembra que Brenda Maddox, na</p><p>biografia de Nora (1988), sugere não apenas que o Kearns de Exílios seja Michael</p><p>Feeney, mas também que Joyce tenha fundido no personagem Michael Furey, de “Os</p><p>mortos”, as pessoas de Michael Finney e Michael Bodkin.</p><p>44. Wotan e Siegfried são personagens do ciclo de óperas O anel do nibelungo, de</p><p>Wagner.</p><p>45. Cf. o poema xi de Récita privada.</p><p>46. O filósofo Arthur Schopenhauer (1788-1860) escreveu um ensaio muito negativo sobre</p><p>as mulheres em 1851.</p><p>47. Amiga de infância de Nora que emigrou para os Estados Unidos.</p><p>48. Referência à ópera Tristão e Isolda (1865), de Wagner.</p><p>49. As palavras “sadismo” e “masoquismo” tiveram origem nos nomes do francês Donatien</p><p>Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade (1740-1814), e do austríaco Leopold</p><p>von Sacher-Masoch (1836-95). Richard Freiherr von Krafft-Ebing (1840-1902) foi o</p><p>psiquiatra que cunhou o termo “masoquismo”, para desagrado de Sacher-Masoch.</p><p>50. “Emissão da semente no vaso natural.” (n. t.)</p><p>51. Personagens das seguintes peças de Henrik Ibsen, nesta ordem: Hedda Gabler (1890),</p><p>Rosmersholm (1886) e O pequeno Eyolf (1894).</p><p>52. David Hume (1711-76), George Berkeley (1685-1753), Arthur James Balfour (1848-</p><p>1930), Henri Bergson (1859-1941).</p><p>53. Charles Paul de Kock (1793-1871), romancista francês que Molly Bloom gosta de ler</p><p>em Ulysses.</p><p>54. François Rabelais (entre 1483 e 1494-1553) e Jean-Baptiste Poquelin, conhecido por</p><p>Molière (1622-73).</p><p>55. “Cepa gaulesa.” (n. t.)</p><p>56. George Dandin ou le mari confondu [George Dandin ou o marido confundido], de 1668,</p><p>é um balé-comédia de Molière, e Sganarelle ou le cocu imaginaire [Sganarelle ou o corno</p><p>imaginário], de 1660, é uma comédia do mesmo autor. Com Le Cocu [O corno], Joyce</p><p>parece se referir ao terceiro livro de Gargântua e Pantagruel, de Rabelais (obra</p><p>publicada em cinco livros entre 1432 e 1564).</p><p>57. Katharine O’Shea (1846-1921) era casada com o capitão William O’Shea, mas</p><p>mantinha um caso com o líder do movimento pela independência da Irlanda, Charles</p><p>Stewart Parnell (1846-91). A descoberta do caso extraconjugal abalou a reputação de</p><p>Parnell na Irlanda.</p><p>58. Em 1152, após uma batalha, Dervorgila teria abandonado Tiernan O’Rourke, príncipe</p><p>de Breffni, para viver com Dermot MacMurrough, rei de Leinster. A outra versão é a de</p><p>que ela foi raptada por MacMurrough. Depois do abandono ou rapto, Dervorgila voltou</p><p>para O’Rourke.</p><p>59. Jens Peter Jacobsen (1847-85), escritor dinamarquês.</p><p>60. Membro da Sociedade dos Irlandeses Unidos, nascido em 1778 e executado em 1803.</p><p>Poemas</p><p>Récita privada</p><p>[Chamber Music, 1907]</p><p>i</p><p>Strings in the earth and air Make music sweet;</p><p>Strings by the river where The willows meet.</p><p>There’s music along the river For Love wanders there, Pale flowers</p><p>on his mantle Dark leaves on his hair.</p><p>All softly playing,</p><p>With head to the music bent, And fingers straying</p><p>Upon an instrument.</p><p>i</p><p>Cordas em terra e ar</p><p>Soam música doce, Cordas no rio onde o par De salgueiros fosse.</p><p>Há música no rio portanto: O Amor vaga em seu zelo, Claras flores</p><p>têm no manto, Folhas negras no cabelo.</p><p>Tudo toca com doçura, Testa baixa em seu intento, E a mão que</p><p>assim segura Um instrumento.</p><p>ii</p><p>The twilight turns from amethyst</p><p>To deep and deeper blue,</p><p>The lamp fills with a pale green glow The trees of the avenue.</p><p>The old piano plays an air,</p><p>Sedate and slow and gay;</p><p>She bends upon the yellow keys,</p><p>Her head inclines this way.</p><p>Shy thoughts and grave wide eyes and hands That wander as they</p><p>list — The twilight turns to darker blue With lights of</p><p>amethyst.</p><p>ii</p><p>A tarde vai de um ametista A azul tão mais escuro, Na rama o poste</p><p>da avenida Põe brilho verde e puro.</p><p>Ária soa num piano antigo, Tom calmo e animado; Curvada sobre as</p><p>teclas sujas, Cabeça assim de lado.</p><p>Tímida, olhos, mãos errantes Atenta ouve a solista — A tarde vai a</p><p>azul-escuro, Matizes de ametista.</p><p>iii</p><p>At that hour when all things have repose, O lonely watcher of the</p><p>skies,</p><p>Do you hear the night wind and the sighs Of harps playing unto</p><p>Love to unclose The pale gates of sunrise?</p><p>When all things repose do you alone</p><p>Awake to hear the sweet harps play To Love before him on his</p><p>way,</p><p>And the night wind answering in antiphon Till night is overgone?</p><p>Play on, invisible harps, unto Love</p><p>Whose way in heaven is aglow</p><p>At that hour when soft lights come and go, Soft sweet music in the</p><p>air above</p><p>And in the earth below.</p><p>iii</p><p>No tempo em que vai tudo repousar, Vigia solitário dessa hora,</p><p>Ouves noturnos ventos fora, Arfam harpas para Amor</p><p>descerrar Os pórticos da aurora?</p><p>Quando repousa tudo, ao despertar As harpas ouvirás sozinho Para</p><p>Amor abrindo seu caminho, E o vento em voz antifonal</p><p>Até a noite ter final?</p><p>Tocai, secretas harpas, para Amor, No céu, trilhando na cintilação</p><p>Enquanto luzes leves vêm e vão, Tons doces, leves, no</p><p>ar superior E abaixo, aqui no chão.</p><p>iv</p><p>When the shy star goes forth in heaven All maidenly, disconsolate,</p><p>Hear you amid the drowsy even</p><p>One who is singing by your gate.</p><p>His song is softer than the dew</p><p>And he is come to visit you.</p><p>O bend no more in revery</p><p>When he at eventide is calling Nor muse: Who may this singer be</p><p>Whose song about my heart is falling?</p><p>Know you by this, the lover’s chant, ’Tis I that am your visitant.</p><p>iv</p><p>Se a estrela vai no firmamento, Tão recatada, em aflição, Ouve no</p><p>ocaso sonolento</p><p>Alguém que canta em teu portão.</p><p>De voz mais doce que o sereno Ele oferece seu aceno.</p><p>Não caias mais em devaneio Quando ele então te chama, Nem</p><p>pense: qual a voz que veio E o canto sobre mim</p><p>derrama?</p><p>Conheça pelo som do amante, Sou eu aquele visitante.</p><p>v</p><p>Lean out of the window, Goldenhair,</p><p>I heard you singing</p><p>A merry air.</p><p>My book is closed;</p><p>I read no more,</p><p>Watching the fire dance On the floor.</p><p>I have left my book:</p><p>I have left my room: For I heard you singing Through the gloom,</p><p>Singing and singing</p><p>A merry air.</p><p>Lean out of the window, Goldenhair.</p><p>v</p><p>Debruça-te à janela,</p><p>Tu, dourada.</p><p>Escuto, estás cantando</p><p>Ária animada.</p><p>Fechado meu livro,</p><p>Deixei a lição,</p><p>Olho a dança das chamas</p><p>Sobre o chão.</p><p>Abandonado o livro,</p><p>Meu quarto abandonei,</p><p>Depois de que no escuro</p><p>Eu te escutei.</p><p>Cantando, cantando</p><p>Uma ária animada,</p><p>Debruça-te à janela,</p><p>Tu, dourada.</p><p>vi</p><p>I would in that sweet bosom be</p><p>(O sweet it is and fair it is!) Where no rude wind might visit me.</p><p>Because of sad austerities</p><p>I would in that sweet bosom be.</p><p>I would be ever in that heart</p><p>(O soft I knock and soft entreat her!) Where only peace might be</p><p>my part.</p><p>Austerities were all the sweeter So I were ever in that heart.</p><p>vi</p><p>Quisera em doce seio estar</p><p>(É doce e belo, e como o quero!)</p><p>Sem ventos rudes suportar.</p><p>Depois de desconsolo austero</p><p>Quisera em doce seio estar.</p><p>Quisera sempre o coração</p><p>(Suave peço, e bato à porta!)</p><p>Que só contém consolação.</p><p>Austeridade pouco importa</p><p>Estando eu nesse coração.</p><p>vii</p><p>My love is in a light attire</p><p>Among the appletrees</p><p>Where the gay winds do most desire To run in companies.</p><p>There, where the gay winds stay to woo The young leaves as they</p><p>pass, My love goes slowly, bending to Her shadow on the</p><p>grass;</p><p>And where the sky’s a pale blue cup Over the laughing land,</p><p>My love goes lightly, holding up Her dress with dainty hand.</p><p>vii</p><p>Quem amo segue em traje leve Por entre as macieiras, Onde a brisa</p><p>boa se atreve E busca companheiras.</p><p>Lá, onde a brisa roça as folhas A declarar que as ama, Ela se curva</p><p>lenta e olha A sombra sobre a grama.</p><p>Onde o céu é taça azulada, Sobre o solo garrido, Ela segue, e sobe</p><p>delicada A barra do vestido.</p><p>viii</p><p>Who goes amid the green wood</p><p>With springtide all adorning her?</p><p>Who goes amid the merry green wood To make it merrier?</p><p>Who passes in the sunlight</p><p>By ways that know the light footfall?</p><p>Who passes in the sweet sunlight With mien so virginal?</p><p>The ways of all the woodland</p><p>Gleam with a soft and golden fire — For whom does all the sunny</p><p>woodland Carry so brave attire?</p><p>O, it is for my true love</p><p>The woods their rich apparel wear — O, it is for my own true love,</p><p>That is so young and fair.</p><p>viii</p><p>Quem segue em meio à mata verde Ornada de estações florais?</p><p>Quem segue em meio à alegre mata verde Por alegrá-la mais?</p><p>Quem passa sob o sol</p><p>Por trilha que seus pés conhece?</p><p>Quem passa sob o doce sol Tão casta que enternece?</p><p>As trilhas da mata inteira Reluzem, ouros calmos, vivos — Por quem</p><p>a ensolarada mata inteira Põe trajes tão altivos?</p><p>Ah, é pelo meu amor</p><p>Que a mata se põe suntuosa — Ah, é por meu vero amor,</p><p>Que é jovem, que é formosa.</p><p>ix</p><p>Winds of May, that dance on the sea, Dancing a ringaround in glee</p><p>From furrow to furrow, while overhead The foam flies up</p><p>to be garlanded In silvery arches spanning the air, Saw</p><p>you my true love anywhere?</p><p>Welladay! Welladay!</p><p>For the winds of May!</p><p>Love is unhappy when love is away!</p><p>ix</p><p>Ventos de maio, que dançam no mar,</p><p>Alegres à roda a dançar</p><p>De sulco em sulco, enquanto voa</p><p>Acima a espuma por coroa,</p><p>Em arcos prata em sua cor,</p><p>Acaso vistes meu amor?</p><p>Lamente! Lamente!</p><p>É maio! Que vente!</p><p>O amor entristece se o amor fica ausente!</p><p>x</p><p>Bright cap and streamers, He sings in the hollow: Come follow, come</p><p>follow, All you that love.</p><p>Leave dreams to the dreamers That will not after, That song and</p><p>laughter Do nothing move.</p><p>With ribbons streaming</p><p>He sings the bolder; In troop at his shoulder The wild bees hum.</p><p>And the time of dreaming Dreams is over — As lover to lover,</p><p>Sweetheart, I come.</p><p>x</p><p>Gorro, fitas, tantas cores, Canta ele no entremontes: Vinde às</p><p>fontes, vinde às fontes, Vós que amais.</p><p>Sonho é para sonhadores De desejos indecisos, Que cantos, que</p><p>risos, Não movem jamais.</p><p>Com fitas, risonho Cantor decidido, Em meio ao zumbido De</p><p>abelhas do ar.</p><p>E o tempo do sonho Já foi o bastante — Amor, venho, de amante,</p><p>Da vida, gozar.</p><p>xi</p><p>Bid adieu, adieu, adieu,</p><p>Bid adieu to girlish days.</p><p>Happy Love is come to woo</p><p>Thee and woo thy girlish ways — The zone that doth become thee</p><p>fair, The snood upon thy yellow hair, When thou hast heard</p><p>his name upon The bugles of the cherubim Begin thou</p><p>softly to unzone</p><p>Thy girlish bosom unto him</p><p>And softly to undo the snood</p><p>That is the sign of maidenhood.</p><p>xi</p><p>Diz adeus, adeus, adeus</p><p>Adeus aos dias de menina Vem Amor conquistar teus Ademanes,</p><p>pequenina — A cinta que te faz tão bela A touca na trança</p><p>amarela, Se o nome dele for tocado Pelo clarim do</p><p>querubim A cinta, lenta, põe de lado E mostra o seio teu</p><p>enfim E, lenta, a touca então abjura, Que é o sinal da vida</p><p>pura.</p><p>xii</p><p>What counsel has the hooded moon</p><p>Put in thy heart, my shyly sweet, Of Love in ancient plenilune,</p><p>Glory and stars beneath his feet — A sage that is but kith and kin</p><p>With the comedian capuchin?</p><p>Believe me rather that am wise</p><p>In disregard of the divine.</p><p>A glory kindles in those eyes,</p><p>Trembles to starlight. Mine, O mine!</p><p>No more be tears in moon or mist</p><p>For thee, sweet sentimentalist.</p><p>xii</p><p>Que ideia a lua encapuzada</p><p>De Amor no plenilúnio ancião, Propôs-te, minha doce amada,</p><p>Com glória e estrelas pelo chão?</p><p>A face dela é só o focinho</p><p>Do histrião que é o capuchinho!</p><p>Crê mais em mim que sábio sou, A divindade é comezinha, Pois</p><p>glória em olhos se abrasou E fez-se em astros. Minha, a</p><p>minha!</p><p>Não mais a lua te contrista, Ó doce sentimentalista.</p><p>xiii</p><p>Go seek her out all courteously And say I come,</p><p>Wind of spices whose song is ever Epithalamium.</p><p>O, hurry over the dark lands And run upon the sea</p><p>For seas and lands shall not divide us, My love and me.</p><p>Now, wind, of your good courtesy I pray you go</p><p>And come into her little garden And sing at her window; Singing: The</p><p>bridal wind is blowing For Love is at his noon; And soon</p><p>will your true love be with you, Soon, O soon.</p><p>xiii</p><p>Cortês, proclame meu chamado, E brame-o,</p><p>Vento oriente cujo canto é Epitalâmio.</p><p>Ah, voe sobre a terra negra, E corra pelo mar Distância alguma</p><p>estes amantes Pode separar.</p><p>Pois, vento, peço que cortês, Alcance a ela, E cante então em seu</p><p>jardim, Sua janela;</p><p>Cantando: Amor estando a pino, Eu núbil sopro agora; E logo chega</p><p>o teu amor, Ah, sem demora.</p><p>xiv</p><p>My dove, my beautiful one, Arise, arise!</p><p>The nightdew lies</p><p>Upon my lips and eyes.</p><p>The odorous winds are weaving A music of sighs:</p><p>Arise, arise,</p><p>My dove, my beautiful one!</p><p>I wait by the cedar tree, My sister, my love.</p><p>White breast of the dove, My breast shall be your bed.</p><p>The pale dew lies</p><p>Like a veil on my head.</p><p>My fair one, my fair dove, Arise, arise!</p><p>xiv</p><p>Minha pomba, minha linda, Voa, voa!</p><p>O orvalho coroa Meus olhos e boca.</p><p>Cheirosos ventos tecem Suspiro que soa: Voa, Voa,</p><p>Minha pomba, minha linda!</p><p>Espero junto ao cedro, Irmã, amada minha, Pomba que me aninha,</p><p>Meu peito então será teu leito.</p><p>Claro orvalho coroa Como véu a minha fronte.</p><p>Minha linda, linda pomba, Voa, voa!</p><p>xv</p><p>From dewy dreams, my soul, arise,</p><p>From love’s deep slumber and from death, For lo! the trees are full</p><p>of sighs</p><p>Whose leaves the morn admonisheth.</p><p>Eastward the gradual dawn prevails</p><p>Where softly burning fires appear, Making to tremble all those veils</p><p>Of grey and golden gossamer.</p><p>While sweetly, gently, secretly,</p><p>The flowery bells of morn are stirred And the wise choirs of faery</p><p>Begin (innumerous!) to be heard.</p><p>xv</p><p>De mádidas visões desperta, Do amar, minh’alma, e do morrer.</p><p>Na mata de cicios coberta, Se Aurora vem às folhas ter.</p><p>Aos poucos Alva sobe ao céu Em brandas flamas ateadas, E inteiro</p><p>faz tremer o véu De gazes gris, gazes douradas.</p><p>Revêm campânulas florais, Secreto e terno despertar.</p><p>Feéricos, sábios corais</p><p>Começam (tantos!) a soar.</p><p>xvi</p><p>O cool is the valley now</p><p>And there, love, will we go</p><p>For many a choir is singing now</p><p>Where Love did sometime go.</p><p>And hear you not the thrushes calling,</p><p>Calling us away?</p><p>O cool and pleasant is the valley</p><p>And there, love, will we stay.</p><p>xvi</p><p>Ah, que fresco o vale agora</p><p>Aonde vamos, meu amor</p><p>Pois há tantos corais cantando agora</p><p>Lá onde antes ia Amor.</p><p>Não ouves nos dizer a ave</p><p>Que nos encaminhemos?</p><p>Ah, que fresco e doce o vale,</p><p>E ali, amor, nós ficaremos.</p><p>xvii</p><p>Because your voice was at my side</p><p>I gave him pain,</p><p>Because within my hand I had</p><p>Your hand again.</p><p>There is no word nor any sign</p><p>Can make amend —</p><p>He is a stanger to me now</p><p>Who was my friend.</p><p>xvii</p><p>Por ter comigo a tua voz,</p><p>Dei-lhe aflição,</p><p>Porque de novo eu segurava</p><p>A tua mão.</p><p>Palavras, nem sinais alguns</p><p>Darão abrigo —</p><p>É estranho a mim agora,</p><p>Quem foi amigo.</p><p>xviii</p><p>O sweetheart, hear you</p><p>Your lover’s tale; A man shall have sorrow When friends him fail.</p><p>For he shall know then</p><p>Friends be untrue</p><p>And a little ashes</p><p>Their words come to.</p><p>But one unto him</p><p>Will softly move</p><p>And softly woo him</p><p>In ways of love.</p><p>His hand is under</p><p>Her smooth round breast; So he who has sorrow</p><p>Shall have rest.</p><p>xviii</p><p>Amada, escuta agora Eu te dizer; É mágoa um amigo Alguém</p><p>perder.</p><p>Ele conhece então Seu fingimento, E viram meras cinzas Os</p><p>juramentos.</p><p>Mas, doce, a ele alguém Se vai propor, E doce seduzi-lo Com dons</p><p>de amor.</p><p>Traz ele a mão por sob O liso seio; E então quem teve mágoa</p><p>Encontra esteio.</p><p>xix</p><p>Be not sad because all men</p><p>Prefer a lying clamour before you:</p><p>Sweetheart, be at peace again —</p><p>Can they dishonour you?</p><p>They are sadder than all tears;</p><p>Their lives ascend as a continual sigh.</p><p>Proudly answer to their tears:</p><p>As they deny, deny.</p><p>xix</p><p>Não se entristeça se eles querem mais</p><p>Mentir abertamente ante você:</p><p>Querida, volte a estar em paz —</p><p>Vão desonrar você?</p><p>São mais tristes do que as lágrimas;</p><p>Sussurros, suas vidas se despegam.</p><p>Responda altiva a suas lágrimas:</p><p>Renega enquanto negam.</p><p>xx</p><p>In the dark pinewood</p><p>I would we lay,</p><p>In deep cool shadow</p><p>At noon of day.</p><p>How sweet to lie there, Sweet to kiss,</p><p>Where the great pine forest Enaisled is!</p><p>Thy kiss descending</p><p>Sweeter were</p><p>With a soft tumult</p><p>Of thy hair.</p><p>O, unto the pinewood</p><p>At noon of day</p><p>Come with me now,</p><p>Sweet love, away.</p><p>xx</p><p>No pinheiral queria Deitar contigo No sol a pino Com sombra e</p><p>abrigo.</p><p>Que doce estar ali, E te beijar, Onde a grande mata Islada está!</p><p>Teu beijo desce Em doce selo Leve tumulto</p><p>Em teu cabelo.</p><p>Ah, no sol a pino Aos pinhos ir, Vem já comigo, Amor, fugir.</p><p>xxi</p><p>He who hath glory lost nor hath</p><p>Found any soul to fellow his,</p><p>Among his foes in scorn and wrath</p><p>Holding to ancient nobleness,</p><p>That high unconsortable one —</p><p>His love is his companion.</p><p>xxi</p><p>Sem encontrar, perdida a glória,</p><p>Alma da mesma natureza,</p><p>Cercado de desprezo e fúria,</p><p>Ele sustém velha nobreza,</p><p>Sem par, um ser tão elevado —</p><p>É seu amor quem leva ao lado.</p><p>xxii</p><p>Of that so sweet imprisonment</p><p>My soul, dearest, is fain — Soft arms that woo me to relent And</p><p>woo me to detain.</p><p>Ah, could they ever hold me there, Gladly were I a prisoner!</p><p>Dearest, through interwoven arms By love made tremulous,</p><p>That night allures me where alarms Nowise may trouble us</p><p>But sleep to dreamier sleep be wed Where soul with soul lies</p><p>prisoned.</p><p>xxii</p><p>Teria em tão doce prisão, Querida, minh’alma vivido — De braços</p><p>presa em sedução, Eu, preso, seduzido.</p><p>Se ali passasse o tempo inteiro, Feliz seria prisioneiro!</p><p>Teus braços, querida, entrançados Que o amor faz tremular, Atraem-</p><p>me à noite que brados Não podem perturbar E ao sono o</p><p>sono então se abraça Minh’alma a tua toca, enlaça.</p><p>xxiii</p><p>This heart that flutters near my heart My hope and all my riches is,</p><p>Unhappy when we draw apart</p><p>And happy between kiss and kiss; My hope and all my riches —</p><p>yes! — And all my happiness.</p><p>For there, as in some mossy nest The wrens will divers treasures</p><p>keep, I laid those treasures I possessed Ere that mine</p><p>eyes had learned to weep.</p><p>Shall we not be as wise as they Though love live but a day?</p><p>xxiii</p><p>Peito que vibra junto ao meu Riqueza minha e meu ensejo, Triste,</p><p>se a distância cresceu.</p><p>Feliz de um beijo a um outro beijo; Riqueza e ensejo seja — sim!</p><p>— Felicidade em mim.</p><p>Pois lá, como em musgoso ninho Tesouros aves vão guardar,</p><p>Dispus tesouros que detinha Bem antes de saber chorar.</p><p>Não vale amor tal cortesia, Mesmo que dure um dia?</p><p>xxiv</p><p>Silently she’s combing,</p><p>Combing her long hair,</p><p>Silently and graciously,</p><p>With many a pretty air.</p><p>The sun is in the willow leaves And on the dappled grass</p><p>And still she’s combing her long hair Before the lookingglass.</p><p>I pray you, cease to comb out, Comb out your long hair,</p><p>For I have heard of witchery</p><p>Under a pretty air,</p><p>That makes as one thing to the lover Staying and going hence,</p><p>All fair, with many a pretty air And many a negligence.</p><p>xxiv</p><p>Silente ela penteia,</p><p>Penteia seu cabelo, Silente e graciosa,</p><p>Com ares de desvelo.</p><p>Há sol nas folhas do salgueiro, Que filtra-se no chão, E ela ainda se</p><p>penteia</p><p>No espelho em reflexão.</p><p>Venho pedir, não mais penteies, Penteies teu cabelo, Pois dizem</p><p>existir feitiços Por sob um tal desvelo, E o amante, entre</p><p>ir e vir, Não sente preferência, Tão bela, com tanto</p><p>desvelo E certa negligência.</p><p>xxv</p><p>Lightly come or lightly go</p><p>Though thy heart presage thee woe, Vales and many a wasted</p><p>sun,</p><p>Oread let thy laughter run Till the irreverent mountain air Ripple all</p><p>thy flying hair.</p><p>Lightly, lightly — ever so:</p><p>Clouds that wrap the vales below At the hour of evenstar</p><p>Lowliest attendants are:</p><p>Love and laughter songconfessed When the heart is heaviest.</p><p>xxv</p><p>Passa leve, leve tanto:</p><p>Mesmo que pressintas pranto, Vales, sóis tornados nada, Ninfa,</p><p>solta a gargalhada Para o irreverente ar</p><p>Teus cabelos ondular.</p><p>Leve, leve — tão e tanto: Nuvens postas como manto Que Vésper</p><p>no vale espraia, Nada mais são que lacaia; Riso e amor</p><p>feitos canção Quando pesa o coração.</p><p>xxvi</p><p>Thou leanest to the shell of night,</p><p>Dear lady, a divining ear.</p><p>In that soft choiring of delight</p><p>What sound hath made thy heart to fear?</p><p>Seemed it of rivers rushing forth</p><p>From the grey deserts of the north?</p><p>That mood of thine, O timorous,</p><p>Is his, if thou but scan it well, Who a mad tale bequeaths to us</p><p>At ghosting hour conjurable —</p><p>And all for some strange name he read In Purchas or in Holinshed.</p><p>xxvi</p><p>Ouvindo a concha das estrelas, Pretendes, Dama, predizer.</p><p>No canto dessas vozes belas, Que som teu peito fez tremer?</p><p>Lembrava um rio que jorra forte De gris deserto mais ao norte?</p><p>O teu humor, ó temorosa,</p><p>Vem dele, se não julgas mal, Que lega uma lenda espantosa</p><p>Ouvida em hora fantasmal — E tudo por um nome estranho</p><p>Que leu nas crônicas d’antanho.</p><p>xxvii</p><p>Though I thy Mithridates were</p><p>Framed to defy the poisondart, Yet must thou fold me unaware</p><p>To know the rapture of thy heart And I but render and confess</p><p>The malice of thy tenderness.</p><p>For elegant and antique phrase,</p><p>Dearest, my lips wax all too wise; Nor have I known a love whose</p><p>praise Our piping poets solemnise, Neither a love where</p><p>may not be</p><p>Ever so little falsity.</p><p>xxvii</p><p>Se eu, como Mitrídates, tente Afrontar seta e danação, Irás prender-</p><p>me, inconsciente, Por desfrutar teu coração, E eu só</p><p>concedo e aceito a pura Maldade da tua ternura.</p><p>A velha voz, de alto tenor, Sábios, meus lábios já não visam Nem</p><p>sei do amor cujo louvor Nossos poetas solenizam, Nem</p><p>de outro amor sem provimento De um mínimo de</p><p>fingimento.</p><p>xxviii</p><p>Gentle lady, do not sing</p><p>Sad songs about the end of love;</p><p>Lay aside sadness and sing</p><p>How love that passes is enough.</p><p>Sing about the long deep sleep</p><p>Of lovers that are dead and how</p><p>In the grave all love shall sleep.</p><p>Love is aweary now.</p><p>xxviii</p><p>Fina dama, não mais cantes</p><p>Tais trenos sobre o fim do amor;</p><p>Que sem ter tristeza cantes</p><p>O amor que passa, e seu valor.</p><p>Canta o longo e fundo sono</p><p>De quem amou e é falecido,</p><p>Na cova amor tem seu sono:</p><p>O amor está exaurido.</p><p>xxix</p><p>Dear heart, why will you use me so?</p><p>Dear eyes that gently me upbraid Still are you beautiful — but O,</p><p>How is your beauty raimented!</p><p>Through the clear mirror of your eyes, Through the soft sigh of kiss</p><p>to kiss, Desolate winds assail with cries</p><p>The shadowy garden where love is.</p><p>And soon shall love dissolved be</p><p>When over us the wild winds blow — But you, dear love, too dear</p><p>to me,</p><p>Alas! why will you use me so?</p><p>xxix</p><p>Amor, por que tens tal intento?</p><p>Olhar que adverte com fineza, És lindo ainda, mas lamento, Que</p><p>trajes traz tua beleza!</p><p>No espelho bom do teu olhar, Pelo suspiro de entre beijos, Vem</p><p>vento triste atormentar</p><p>A sombra fresca onde Amor vejo.</p><p>Vai logo o amor se dissolver, Se em nós feroz soprar o vento —</p><p>Querida, amor que prezo ter, Mas, ai! por que tens tal</p><p>intento?</p><p>xxx</p><p>Love came to us in time gone by</p><p>When one at twilight shyly played And one in fear was standing</p><p>nigh — For Love at first is all afraid.</p><p>We were grave lovers. Love is past That had his sweet hours many</p><p>a one.</p><p>Welcome to us now at the last</p><p>The ways that we shall go upon.</p><p>xxx</p><p>O amor nos veio no passado</p><p>Quando um brincava ao sol poente</p><p>E o outro olhava amedrontado —</p><p>De início, Amor só medo sente.</p><p>Amamos fundo. E teve fim</p><p>Com horas doces, tão sem par;</p><p>Bem-vindas nos sejam enfim</p><p>As vias que hemos de trilhar.</p><p>xxxi</p><p>O, it was out by Donnycarney</p><p>When the bat flew from tree to tree My love and I did walk together</p><p>And sweet were the words she said to me.</p><p>Along with us the summer wind</p><p>Went murmuring — O, happily! — But softer than the breath of</p><p>summer Was the kiss she gave to me.</p><p>xxxi</p><p>Ah, foi perto lá de Donnycarney</p><p>Quando o morcego esvoaçava</p><p>Que caminhamos lado a lado</p><p>E com doçura ela falava.</p><p>Conosco o vento do verão</p><p>Que — tão feliz — só murmurava,</p><p>Ainda mais suave era</p><p>O beijo que ela me dava.</p><p>xxxii</p><p>Rain has fallen all the day</p><p>O come among the laden trees.</p><p>The leaves lie thick upon the way</p><p>Of memories.</p><p>Staying a little by the way</p><p>Of memories shall we depart.</p><p>Come, my beloved, where I may</p><p>Speak to your heart.</p><p>xxxii</p><p>Choveu durante todo o dia.</p><p>Ah, vem entre a vegetação:</p><p>Há tantas folhas sobre a via</p><p>Da rememoração.</p><p>Breve detidos junto à via</p><p>Havemos de nos separar.</p><p>Amor, vem onde eu poderia</p><p>Sincero te falar.</p><p>xxxiii</p><p>Now, O now, in this brown land</p><p>Where Love did so sweet music make We two shall wander, hand</p><p>in hand,</p><p>Forbearing for old friendship’ sake Nor grieve because our love</p><p>was gay Which now is ended in this way.</p><p>A rogue in red and yellow dress</p><p>Is knocking, knocking at the tree And all around our loneliness</p><p>The wind is whistling merrily.</p><p>The leaves</p><p>— they do not sigh at all When the year takes them in</p><p>the fall.</p><p>Now, O now, we hear no more</p><p>The vilanelle and roundelay!</p><p>Yet will we kiss, sweetheart, before We take sad leave at close of</p><p>day.</p><p>Grieve not, sweetheart, for anything — The year, the year is</p><p>gathering.</p><p>xxxiii</p><p>Agora, em castanha nação</p><p>Onde soaram tons de amor Caminharemos, mão na mão,</p><p>Pois a amizade tem valor, Sem dor por ver amor assim, Outrora</p><p>alegre, ter seu fim.</p><p>Velhaco em trajes aurirrubros No tronco bate, persistente; E em</p><p>torno a nós então descubro Que o vento sopra</p><p>alegremente.</p><p>A folha — muda — nunca chora Quando outro outono a leva</p><p>embora.</p><p>Agora não vão mais soar</p><p>A vilanela e a cantoria!</p><p>E ainda vamos nos beijar</p><p>Antes do adeus ao fim do dia.</p><p>Não sintas dor, amor, por nada — O outono encerra a temporada.</p><p>xxxiv</p><p>Sleep now, O sleep now,</p><p>O you unquiet heart!</p><p>A voice crying ‘Sleep now’</p><p>Is heard in my heart.</p><p>The voice of the winter</p><p>Is heard at the door.</p><p>O sleep for the winter</p><p>Is crying ‘Sleep no more!’</p><p>My kiss will give peace now And quiet to your heart — Sleep on in</p><p>peace now,</p><p>O you unquiet heart!</p><p>xxxiv</p><p>Ah, dorme, dorme agora,</p><p>Inquieto coração!</p><p>Um grito “Dorme agora”</p><p>Soa em meu coração.</p><p>O grito do inverno</p><p>Soou nos portais.</p><p>Ah, dorme, pois o inverno</p><p>Grita “Não durmas mais”.</p><p>Meu beijo é paz agora</p><p>Para o teu coração —</p><p>Vai, dorme em paz agora,</p><p>Inquieto coração!</p><p>xxxv</p><p>All day I hear the noise of waters Making moan</p><p>Sad as the seabird is when going Forth alone</p><p>He hears the winds cry to the waters’</p><p>Monotone.</p><p>The grey winds, the cold winds are blowing Where I go.</p><p>I hear the noise of many waters Far below.</p><p>All day, all night, I hear them flowing To and fro.</p><p>xxxv</p><p>Escuto o dia todo a água</p><p>Tão tristonha</p><p>Gemendo como ao mar voando</p><p>Uma cegonha</p><p>Ouve que o vento grita à água</p><p>Enfadonha</p><p>Gris, ventos frios estão soprando</p><p>Aonde vou</p><p>Eu ouço o som de tanta água</p><p>Que tombou</p><p>E dia e noite está jorrando</p><p>E já jorrou.</p><p>xxxvi</p><p>I hear an army charging upon the land</p><p>And the thunder of horses plunging, foam about their knees.</p><p>Arrogant, in black armour, behind them stand,</p><p>Disdaining the reins, with fluttering whips, the charioteers.</p><p>They cry unto the night their battlename:</p><p>I moan in sleep when I hear afar their whirling laughter.</p><p>They cleave the gloom of dreams, a blinding flame,</p><p>Clanging, clanging upon the heart as upon an anvil.</p><p>They come shaking in triumph their long green hair:</p><p>They come out of the sea and run shouting by the shore.</p><p>My heart, have you no wisdom thus to despair?</p><p>My love, my love, my love, why have you left me alone?</p><p>xxxvi</p><p>Ouço um exército que invade esta terra, E o trovão dos cavalos</p><p>vindo, espuma nos jarretes: Arrogantes, negras couraças</p><p>de guerra, Rédea solta, açoites vibrando, os cocheiros</p><p>das bigas.</p><p>Soam na noite seus nomes medonhos:</p><p>Gemo dormindo com o turbilhão de seu riso.</p><p>Chama que cinde a escuridão dos sonhos, E tine, retine no peito</p><p>feito bigorna.</p><p>Triunfais, cabelo esverdeado ao vento: Eles vêm do mar correndo</p><p>aos gritos pela praia.</p><p>Meu peito, por que então cais neste lamento?</p><p>Amor, amor, amor, por que me deixaste só?</p><p>Trocados porversos</p><p>[Pomes Penyeach, 1927]</p><p>tilly</p><p>He travels after a winter sun, Urging the cattle along a cold red road,</p><p>Calling to them, a voice they know, He drives his beasts above</p><p>Cabra.</p><p>The voice tells them home is warm.</p><p>They moo and make brute music with their hoofs.</p><p>He drives them with a flowering branch before him, Smoke pluming</p><p>their foreheads.</p><p>Boor, bond of the herd,</p><p>Tonight stretch full by the fire!</p><p>I bleed by the black stream</p><p>For my torn bough!</p><p>Dublin, 1904</p><p>quebra</p><p>Viaja atrás de um sol de inverno Instando as vacas numa rubra trilha</p><p>fria, Chamando, uma voz conhecida, Tange as bestas sobre a vila.</p><p>A voz lhes diz que o lar é quente.</p><p>Mugindo, troam música nos cascos.</p><p>Tange tendo à frente um ramo em flor, Fumaça evola-se entre</p><p>cornos.</p><p>Labrego, liame do rebanho,</p><p>Estica-te hoje à noite junto ao fogo!</p><p>Eu sangro à margem do ribeiro negro Por meu ramo arrancado!</p><p>Dublin, 1904</p><p>watching the needleboats at san sabba</p><p>I heard their young hearts crying Loveward above the glancing oar</p><p>And heard the prairie grasses sighing: No more, return no more!</p><p>O hearts, O sighing grasses, Vainly your loveblown bannerets</p><p>mourn!</p><p>No more will the wild wind that passes Return, no more return.</p><p>Trieste, 1912</p><p>olhando os botes em san sabba</p><p>Ouvi seus jovens corações gritando Rumo amor, remando junto ao</p><p>cais.</p><p>Ouvi campinas suspirando:</p><p>Jamais, não tornes mais!</p><p>Ah, corações, campinas e seus ais, Em vão suas faixas de amor vão</p><p>chorar!</p><p>O vento que varre feroz não vai mais Tornar, jamais tornar.</p><p>Trieste, 1912</p><p>a flower given to my daughter</p><p>Frail the white rose and frail are</p><p>Her hands that gave</p><p>Whose soul is sere and paler</p><p>Than time’s wan wave.</p><p>Rosefrail and fair — yet frailest</p><p>A wonder wild</p><p>In gentle eyes thou veilest,</p><p>My blueveined child.</p><p>Trieste, 1913</p><p>uma flor dada a minha filha</p><p>Frágil rosa branca e frágil</p><p>A mão que a estende</p><p>Alma clara menos ágil</p><p>Que a mão do tempo.</p><p>Flormente frágil, bela — mas ainda</p><p>Maior maravilha</p><p>Tu velas em miradas lindas,</p><p>Veias finas, minha filha.</p><p>Trieste, 1913</p><p>she weeps over rahoon</p><p>Rain on Rahoon falls softly, softly falling, Where my dark lover lies.</p><p>Sad is his voice that calls me, sadly calling, At grey moonrise.</p><p>Love, hear thou</p><p>How soft, how sad his voice is ever calling, Ever unanswered, and</p><p>the dark rain falling, Then as now.</p><p>Dark too our hearts, O love, shall lie and cold As his sad heart has</p><p>lain Under the moongrey nettles, the black mould And muttering rain.</p><p>Trieste, 1913</p><p>ela chora por rahoon</p><p>Chuva em Rahoon cai leve, leve cai, Onde jaz meu amado</p><p>Triste sua voz que me chama, e se esvai, No luarcinzentado.</p><p>Amor, presta atenção</p><p>Quão leve a triste voz se esvai, Irrespondida, enquanto a chuva cai,</p><p>Agora como então.</p><p>E triste o nosso coração, Amor, Como o dele jaz frio</p><p>Sob urtigas grisluar, e bolor, Sob a chuva em balbucio.</p><p>Trieste, 1913</p><p>tutto è sciolto</p><p>A birdless heaven, seadusk, one lone star Piercing the west, As</p><p>thou, fond heart, love’s time, so faint, so far, Rememberest.</p><p>The clear young eyes’ soft look, the candid brow, The fragrant hair,</p><p>Falling as through the silence falleth now Dusk of the air.</p><p>Why then, remembering those shy Sweet lures, repine When the</p><p>dear love she yielded with a sigh Was all but thine?</p><p>Trieste, 1914</p><p>tutto è sciolto</p><p>Sem aves, astro só no mar poente Perfura o oeste, E o tempo terno,</p><p>tênue, quase ausente Não esqueceste.</p><p>A fronte franca, a trança perfumada O claro olhar,</p><p>Caindo como agora na calada O pôr do ar.</p><p>Por que teus ais, lembrando o amor Que ela cedeu,</p><p>E que entre ardis, acanhamento e ardor Foi quase teu?</p><p>Trieste, 1914</p><p>on the beach at fontana</p><p>Wind whines and whines the shingle, The crazy pierstakes groan; A</p><p>senile sea numbers each single Slimesilvered stone.</p><p>From whining wind and colder Grey sea I wrap him warm And touch</p><p>his trembling fineboned shoulder And boyish arm.</p><p>Around us fear, descending Darkness of fear above</p><p>And in my heart how deep unending Ache of love!</p><p>Trieste, 1914</p><p>na praia em fontana</p><p>O vento uivando, uivando as pedras, Torto geme o molhe; Prata o</p><p>limo sobre seixos medra, Que um mar senil escolhe.</p><p>Do vento e do mais frio do mar Aninho o menino</p><p>Envolto sinto tiritar Seu ombro fino.</p><p>O medo em torno a nós se adensa, Negro pavor;</p><p>E no meu peito a funda, imensa Dor do amor!</p><p>Trieste, 1914</p><p>simples</p><p>O bella bionda,</p><p>Sei come l’onda!</p><p>Of cool sweet dew and radiance mild The moon a web of silence</p><p>weaves In the still garden where a child Gathers the simple salad</p><p>leaves.</p><p>A moondew stars her hanging hair And moonlight kisses her young</p><p>brow And, gathering, she sings an air: Fair as the wave is, fair, art</p><p>thou!</p><p>Be mine, I pray, a waxen ear</p><p>To shield me from her childish croon And mine a shielded heart for</p><p>her Who gathers simples of the moon.</p><p>Trieste, 1915</p><p>simples</p><p>O bella bionda, Sei come l’onda!</p><p>De orvalho fresco e de aura fina Silente a lua teias plissa</p><p>Na horta quieta onde a menina Colhe tão simples hortaliça.</p><p>Serena a lua que atavia,</p><p>É lua a luz que a pele</p><p>que estivéssemos juntos muitas</p><p>vezes.</p><p>richard</p><p>Ele me contou do noivado secreto de vocês. Ele não tinha segredos</p><p>para mim. Imagino que você saiba disso.</p><p>beatrice</p><p>(desconfortável) O que aconteceu — entre nós — faz tanto tempo.</p><p>Eu era criança.</p><p>richard</p><p>(sorri com malícia) Criança? Certeza? Foi no jardim da casa da mãe</p><p>dele. Não é? (aponta para o jardim) Bem ali. Vocês se</p><p>comprometeram, como se diz, com um beijo. E você lhe deu a liga</p><p>da sua meia. É permitido mencionar esse detalhe?</p><p>beatrice</p><p>(com certa reserva) Se você acha que vale a pena.</p><p>richard</p><p>Acho que você não se esqueceu disso. (juntando as mãos em</p><p>silêncio) Eu não entendo. Também achei que depois que eu fosse</p><p>embora… A minha partida te fez sofrer?</p><p>beatrice</p><p>Eu sempre soube que um dia você iria embora. Eu não sofri.</p><p>Apenas mudei.</p><p>richard</p><p>Com ele?</p><p>beatrice</p><p>Tudo mudou. A vida dele, até a cabeça dele pareceu diferente</p><p>depois daquilo.</p><p>richard</p><p>(refletindo) Sim. Eu vi que você tinha mudado quando recebi a sua</p><p>primeira carta depois de um ano; depois da sua doença também.</p><p>Você até dizia isso na carta.</p><p>beatrice</p><p>Eu quase morri. Comecei a ver as coisas de outra maneira.</p><p>richard</p><p>E aos poucos surgiu uma certa frieza entre vocês. Foi isso?</p><p>beatrice</p><p>(semicerrando os olhos) Não. Não imediatamente. Eu via nele um</p><p>reflexo p��lido de você. Depois isso também se apagou. Falar disso</p><p>agora serve para quê?</p><p>richard</p><p>(com energia contida) Mas o que é isso que parece pender sobre</p><p>você? Não pode ser tão trágico assim.</p><p>beatrice</p><p>(calma) Ah, nem um pouco trágico. Devo ir melhorando aos poucos,</p><p>pelo que me dizem, à medida que for envelhecendo. Como eu não</p><p>morri naquela época, dizem que provavelmente não vou morrer</p><p>agora. Recebi de novo a vida e a saúde — bem quando não posso</p><p>mais usar. (calma e amarga) Estou convalescendo.</p><p>richard</p><p>(delicadamente) Então nada na sua vida te dá paz? Ela deve existir</p><p>em algum lugar para você.</p><p>beatrice</p><p>Se na nossa religião tivesse conventos,8 quem sabe lá. Pelo menos</p><p>é o que eu penso às vezes.</p><p>richard</p><p>(balança a cabeça) Não, srta. Justice, nem lá. A senhorita não ia</p><p>conseguir se entregar plena e voluntariamente.</p><p>beatrice</p><p>(olhando para ele) Eu ia tentar.</p><p>richard</p><p>Ia, sim. Você se sentia atraída por ele como a sua mente se sentia</p><p>atraída pela minha. Você não se entregou de verdade a ele. Nem a</p><p>mim, ainda que isso tenha acontecido de outra maneira. Você não</p><p>consegue se entregar plena e voluntariamente.</p><p>beatrice</p><p>(junta as mãos delicadamente) É algo difícil demais, sr. Rowan, se</p><p>entregar plena e voluntariamente e ser feliz.</p><p>richard</p><p>Mas você sente que a felicidade é o melhor, o maior que se pode</p><p>ter?</p><p>beatrice</p><p>(fervorosamente) Queria poder sentir.</p><p>richard</p><p>(reclina-se, as mãos trançadas atrás da cabeça) Ah, se você</p><p>soubesse como estou sofrendo neste momento! Pela sua situação</p><p>também. Mas sofrendo acima de tudo pela minha. (com um vigor</p><p>amargurado) E como rezo para receber de novo a dureza de</p><p>coração da minha falecida mãe!9 Porque alguma ajuda, dentro ou</p><p>fora de mim, eu tenho que encontrar. E vou encontrar.</p><p>[beatrice se levanta, olha atenta para ele e vai na direção da porta</p><p>do jardim. Dá meia-volta, indecisa, olha novamente para ele e,</p><p>voltando, apoia-se na cadeira estofada.]</p><p>beatrice</p><p>(baixo) Ela pediu para ver você antes de morrer, sr. Rowan?</p><p>richard</p><p>(alheado) Quem?</p><p>beatrice</p><p>Sua mãe.</p><p>richard</p><p>(caindo em si, olha concentradamente para ela por um momento)</p><p>Então isso, também, foi o que meus amigos disseram de mim por</p><p>aqui — que ela pediu para me ver e eu não vim?</p><p>beatrice</p><p>Sim.</p><p>richard</p><p>(com frieza) Ela não pediu. Morreu sozinha, sem ter me perdoado, e</p><p>fortalecida pelos ritos da santa Igreja.</p><p>beatrice</p><p>Sr. Rowan, por que falar comigo dessa maneira?</p><p>richard</p><p>(levanta-se e caminha nervoso de um lado para outro) E esse meu</p><p>sofrimento de agora, você vai dizer que é o meu castigo.</p><p>beatrice</p><p>Ela lhe escreveu? Antes, quero dizer…</p><p>richard</p><p>(detendo-se) Sim. Um aviso, pedindo que eu rompesse com o</p><p>passado e lembrasse as últimas palavras que ela me disse.</p><p>beatrice</p><p>(delicadamente) E a morte não o comove, sr. Rowan? É um fim.</p><p>Tudo mais é tão incerto!</p><p>richard</p><p>Enquanto estava viva, ela se afastou de mim e dos meus. Isso não</p><p>se pode negar.</p><p>beatrice</p><p>De você e de…?</p><p>richard</p><p>De Bertha, de mim e do nosso filho. Então fiquei esperando pelo fim,</p><p>como você disse; e ele veio.</p><p>beatrice</p><p>(tapa o rosto com as mãos) Ah, não. Não pode ser.</p><p>richard</p><p>(enfurecido) Como é que as minhas palavras podem ferir o corpo</p><p>dela, que está apodrecendo no túmulo? Você acha que eu não sinto</p><p>pena do amor frio e seco que ela me devotava? Enquanto ela</p><p>estava viva lutei com todas as forças contra o seu espírito. (põe a</p><p>mão na testa) Ele ainda me enfrenta — aqui.</p><p>beatrice</p><p>(como antes) Ah, não fale assim.</p><p>richard</p><p>Ela me afastou. Por causa dela vivi anos no exílio, e na pobreza</p><p>também, ou perto disso. Nunca aceitei as doações que ela me</p><p>enviava pelo banco. Eu também esperei. Não que ela morresse,</p><p>mas que mostrasse alguma compreensão por mim, seu filho, carne</p><p>e sangue dela mesma. Isso nunca veio.</p><p>beatrice</p><p>Nem depois do Archie…?</p><p>richard</p><p>(ríspido) O meu filho, você acha? Fruto do pecado e da vergonha!</p><p>Está falando sério? (ela levanta o rosto e olha para ele) Este lugar</p><p>estava cheio de línguas preparadas para contar tudo a ela, para</p><p>azedar ainda mais aquela mente ferina contra mim e contra Bertha e</p><p>o nosso filho sem nome e sem deus. (estendendo as mãos para ela)</p><p>Consegue ouvi-la rindo de mim enquanto falo? Com certeza você</p><p>reconhece a voz, a voz que te chamava de protestante infame, de</p><p>filha do pervertido. (com repentino autocontrole) Uma mulher</p><p>impressionante, de qualquer maneira.</p><p>beatrice</p><p>(sem vigor) Pelo menos você está livre agora.</p><p>richard</p><p>(concorda com a cabeça) Sim, ela não pôde nem alterar o</p><p>testamento do meu pai nem viver para sempre.</p><p>beatrice</p><p>(de mãos postas) Os dois já se foram, sr. Rowan. Os dois o</p><p>amavam, acredite em mim. Morreram pensando em você.</p><p>richard</p><p>(chegando mais perto, toca levemente o ombro dela e aponta para o</p><p>desenho feito a giz de cera, pendurado na parede) Está vendo ele</p><p>ali, sorridente e elegante? Morreu pensando em mim! Eu lembro da</p><p>noite em que ele morreu. (detém-se por um instante e depois</p><p>prossegue com calma) Eu era um garoto de catorze anos. Ele me</p><p>chamou à cabeceira de sua cama. Sabia que eu queria ir ao teatro</p><p>ver Carmen.10 Disse para a minha mãe me dar um xelim.11 Eu dei</p><p>um beijo nele e fui. Quando voltei para casa ele estava morto. Até</p><p>onde eu soube, seu último pensamento foi esse.</p><p>beatrice</p><p>A dureza de coração que você pediu nas suas preces… (ela se</p><p>interrompe) richard</p><p>(sem dar por isso) É minha última lembrança dele. Não tem algo de</p><p>doce e nobre nela?</p><p>beatrice</p><p>Sr. Rowan, algo está na sua cabeça para você falar dessa maneira.</p><p>Algo mudou desde que vocês voltaram há três meses.</p><p>richard</p><p>(de novo olhando o desenho, com calma, quase com alegria) Ele vai</p><p>me ajudar, talvez, meu belo pai sorridente.</p><p>[Ouve-se uma batida na porta da esquerda.]</p><p>richard</p><p>(de repente) Não, não. Não o todo-sorrisos, srta. Justice. A velha</p><p>mãe. É do espírito dela que eu preciso. Eu vou sair.</p><p>beatrice</p><p>Alguém bateu. Eles voltaram.</p><p>richard</p><p>Não, Bertha tem a chave. É ele. Enfim, eu vou indo, seja lá quem</p><p>for.</p><p>[Ele sai depressa pela esquerda e volta imediatamente com um</p><p>chapéu de palha na mão.]</p><p>beatrice</p><p>Ele? Quem?</p><p>richard</p><p>Ah, provavelmente Robert. Vou sair pelo jardim. Não posso falar</p><p>com ele agora. Diga que fui até o correio. Adeus.</p><p>beatrice</p><p>(cada vez mais alarmada) É o Robert que você não quer ver?</p><p>richard</p><p>(baixo) Neste momento, sim. Essa conversa me deixou</p><p>transtornado. Peça que ele espere.</p><p>beatrice</p><p>Você vai voltar?</p><p>richard</p><p>Queira Deus.</p><p>[Ele sai rapidamente pelo jardim. beatrice ameaça segui-lo, mas</p><p>se detém depois de alguns passos. brigid entra pela porta</p><p>sanfonada da direita e sai pela da esquerda. Ouve-se a porta do</p><p>saguão sendo aberta. Segundos depois brigid entra com robert</p><p>hand.</p><p>robert hand é um homem de estatura mediana, um tanto roliço,</p><p>sonda; Colhendo, canta a melodia:</p><p>Tão linda, és linda como a onda!</p><p>Que se me tapem as orelhas,</p><p>Escudos contra o seu cantar; Meu peito escudo seja a ela, Que</p><p>colhe os simples do luar.</p><p>Trieste, 1915</p><p>flood</p><p>Goldbrown upon the sated flood</p><p>The rockvine clusters lift and sway; Vast wings above the lambent</p><p>waters brood Of sullen day.</p><p>A waste of waters ruthlessly</p><p>Sways and uplifts its weedy mane Where brooding day stares down</p><p>upon the sea In dull disdain.</p><p>Uplift and sway, O golden vine, Your clustered fruits to love’s full</p><p>flood, Lambent and vast and ruthless as is thine Incertitude!</p><p>Trieste, 1915</p><p>enchente</p><p>Ouropardo sobre a farta enchente Vinha em ramos vinha, subia</p><p>Vasta sobre as águas, asa pendente Do triste dia.</p><p>Excesso d’água, sem pesar Subindo e vindo a crina viva Onde,</p><p>pendente, a luz encara o mar Fria e passiva.</p><p>Ó áurea vinha, vem, flutua, Teu fruto oferta ao mar do coração Tão</p><p>vasto e sem pesar como na tua Hesitação!</p><p>Trieste, 1915</p><p>nightpiece</p><p>Gaunt in gloom,</p><p>The pale stars their torches, Enshrouded, wave.</p><p>Ghostfires from heaven’s far verges faint illume, Arches on soaring</p><p>arches, Night’s sindark nave.</p><p>Seraphim,</p><p>The lost hosts awaken To service till</p><p>In moonless gloom each lapses muted, dim, Raised when she has</p><p>and shaken Her thurible.</p><p>And long and loud,</p><p>To night’s nave upsoaring, A starknell tolls</p><p>As the bleak incense surges, cloud on cloud, Voidward from the</p><p>adoring Waste of souls.</p><p>Trieste, 1915</p><p>noturno</p><p>Tétricos no breu,</p><p>Fachos dos astros fracos: Amortalhado lume.</p><p>Fogos vêm fátuos dos longes lindes do céu, Em arcos outros arcos,</p><p>Nave-pecado-negrume.</p><p>Serafim,</p><p>Desperta o soldado perdido Para o serviço temporário Até que em</p><p>breu seu brio tem mudo fim Quando por ela erguido O incensário.</p><p>E alto e denso,</p><p>Pela noturna nave em frente, Um sino soa em trauma Por entre</p><p>nuvens, renuvens de incenso, Que lança ao nada o reverente</p><p>Deserto de almas.</p><p>Trieste, 1915</p><p>alone</p><p>The moon’s greygolden meshes make</p><p>All night a veil,</p><p>The shorelamps in the sleeping lake</p><p>Laburnum tendrils trail.</p><p>The sly reeds whisper to the night</p><p>A name — her name —</p><p>And all my soul is a delight,</p><p>A swoon of shame.</p><p>Zurich, 1916</p><p>só</p><p>Grisáurea a lua enreda e faz</p><p>Da noite um véu,</p><p>Nas lâmpadas do lago em paz</p><p>Gavinhas vão ao léu.</p><p>Sussurram juncos para o escuro</p><p>Um nome — o dela —</p><p>Minh’alma é só deleite impuro,</p><p>Vergonha bela.</p><p>Zurique, 1916</p><p>a memory of the players in a mirror at midnight</p><p>They mouth love’s language. Gnash The thirteen teeth</p><p>Your lean jaws grin with. Lash Your itch and quailing, nude greed of</p><p>the flesh.</p><p>Love’s breath in you is stale, worded or sung, As sour as cat’s</p><p>breath,</p><p>Harsh of tongue.</p><p>This grey that stares</p><p>Lies not, stark skin and bone.</p><p>Leave greasy lips their kissing. None Will choose her what you see</p><p>to mouth upon.</p><p>Dire hunger holds his hour.</p><p>Pluck forth your heart, saltblood, a fruit of tears.</p><p>Pluck and devour!</p><p>Zurich, 1917</p><p>lembrança dos atores num espelho à meia-noite</p><p>Discursos de amor eles fingem. Rangem Teus treze caninos, Riso</p><p>nessa boca magra. Tangem Prurido e temor, desejo nu confrangem.</p><p>Em tua fala ou canto o amor é míngua, Acre bafo felino, Áspera</p><p>língua.</p><p>Tal cinza entanto, Pele e ossos, não mente, Seu beijo mancha os</p><p>lábios. Ninguém Tem nela meta, ditos nulos te convêm.</p><p>A fome faz a hora.</p><p>Extrai teu coração, sal-sangue e pranto, Extrai, devora!</p><p>Zurique, 1917</p><p>bahnhofstrasse</p><p>The eyes that mock me sign the way Whereto I pass at eve of day,</p><p>Grey way whose violet signals are The trysting and the twining star.</p><p>Ah star of evil! star of pain!</p><p>Highhearted youth comes not again Nor old heart’s wisdom yet to</p><p>know The signs that mock me as I go.</p><p>Zurich, 1918</p><p>bahnhofstrasse</p><p>Maus olhos mostram-me essa via</p><p>Aonde eu vou ao fim do dia,</p><p>Gris via, de marcas composta:</p><p>A estrela dupla e a sobreposta.</p><p>Astro do mal! Astro dos ais!</p><p>A aurora já não volta mais</p><p>Nem velhos sisos por chegar</p><p>Más marcas mostram-me ao passar.</p><p>Zurique, 1918</p><p>a prayer</p><p>Again!</p><p>Come, give, yield all your strength to me!</p><p>From far a low word breathes on the breaking brain Its cruel calm,</p><p>submission’s misery,</p><p>Gentling her awe as to a soul predestined.</p><p>Cease, silent love! My doom!</p><p>Blind me with your dark nearness, O have mercy, beloved enemy of</p><p>my will!</p><p>I dare not withstand the cold touch that I dread.</p><p>Draw from me still</p><p>My slow life! Bend deeper on me, threatening head, Proud by my</p><p>downfall, remembering, pitying Him who is, him who was!</p><p>Again!</p><p>Together, folded by the night, they lay on earth. I hear From far her</p><p>low word breathe on my breaking brain.</p><p>Come! I yield. Bend deeper upon me! I am here.</p><p>Subduer, do not leave me! Only joy, only anguish, Take me, save</p><p>me, soothe me, O spare me!</p><p>Paris, 1924</p><p>uma oração</p><p>Novamente!</p><p>Vem, cede à minha força a tua ação!</p><p>De longe sopra uma palavra nos cacos da mente Sua crua calma, a</p><p>dor da submissão, Delicando-a como alma destinada.</p><p>Cessa, amor silente! Meu fim!</p><p>Cega-me, negra proximidade, ah, tem pena, amada rival da</p><p>vontade!</p><p>Não ouso não temer teu toque frio em mim.</p><p>Suga essa morosidade</p><p>De vida! Curva, dura, a cabeça sobre mim Orgulhosa de minha</p><p>queda, lembra, lamenta Quem sou, e quem fui!</p><p>Novamente!</p><p>Juntos, envoltos na noite, eles jazem. Ouvi De longe a voz soprar</p><p>nos cacos desta mente.</p><p>Vem! Cedi. Curva-te mais sobre mim! Estou aqui.</p><p>Dominadora, não te vás! Só gozo, só angústia, Leva-me, salva-me,</p><p>acalma-me. Poupa!</p><p>Paris, 1924</p><p>Ecce puer</p><p>[1932]</p><p>ecce puer</p><p>Of the dark past</p><p>A child is born;</p><p>With joy and grief</p><p>My heart is torn.</p><p>Calm in his cradle</p><p>The living lies.</p><p>May love and mercy</p><p>Unclose his eyes!</p><p>Young life is breathed On the glass;</p><p>The world that was not Comes to pass.</p><p>A child is sleeping: An old man gone.</p><p>O, father forsaken, Forgive your son!</p><p>(February 1932)</p><p>ecce puer</p><p>De negros tempos Nasce um eleito; Prazer e dor Cindem meu peito.</p><p>Calmo no berço Está quem vive.</p><p>Que o amor seus olhos Reavive!</p><p>Sopra no espelho A vida nova; E um outro mundo Se comprova.</p><p>Dorme um bebê: O avô morreu.</p><p>Ó pai, perdoa O filho teu!</p><p>(Fevereiro, 1932)</p><p>Notas desta edição</p><p>Foram inúmeras as fontes consultadas para elaborar as notas desta</p><p>tradução. As fontes principais se encontram na seção “Sugestões de</p><p>leitura”.</p><p>exílios</p><p>A ambiguidade dos títulos que Joyce deu às suas obras representa</p><p>um desafio ao tradutor. Quando Carlo Linati — o mesmo cujo nome</p><p>batizou o “Esquema Linati”, que Joyce elaborou sobre Ulysses —</p><p>traduziu Exiles para o italiano, Joyce lhe disse que preferia Esuli a</p><p>Esiliati, pois, embora as duas palavras significassem “exilados”,</p><p>apenas a primeira se referia aos exilados voluntários, caso dos</p><p>personagens da peça.</p><p>Tudo estaria resolvido se exiles, do inglês, não significasse tanto</p><p>“exílios” quanto “exilados” e Joyce não estivesse com receio de que</p><p>a proximidade do título Esiliati com Les Exilés, peça francesa que</p><p>estreara na Itália havia pouco tempo, pudesse prejudicar a bilheteria</p><p>de sua peça.</p><p>A ambiguidade da palavra exiles do título original, somada à</p><p>discussão sobre a natureza do exílio presente na peça, faz com que</p><p>o título desta obra não fuja à regra: títulos em Joyce são quase</p><p>sempre ambíguos. Basta ver as notas para Récita privada e</p><p>Trocados porversos nesta edição.</p><p>Como escreveu Richard Ellmann em um ensaio sobre a peça (cf.</p><p>Sugestões de leitura), Joyce “reconhecia a densidade” da palavra</p><p>exiles. O próprio escritor, já em 1905, escrevia a seu irmão</p><p>Stanislaus: “Passei a aceitar minha presente situação de exilado</p><p>[exile] voluntário”.</p><p>Não obstante a preferência de Joyce por “exilados” em detrimento</p><p>de “exílios” (ele não sugeriu Esili [exílios] para a tradução italiana do</p><p>título, mas escolheu entre Esuli e Esiliati), esta tradução brasileira,</p><p>aproveitando as possibilidades oferecidas pelo título original,</p><p>abandou Exilados, tradução corrente em língua portuguesa, e optou</p><p>por Exílios. A escolha de Galindo revela sua interpretação da peça e</p><p>lança outro olhar sobre a história. Eis uma das tarefas do tradutor:</p><p>desbravar novos caminhos interpretativos. E Galindo faz isso ao</p><p>iluminar mais o estado das pessoas do que elas próprias, mais a</p><p>atmosfera criada no palco</p><p>do que os personagens que nele vivem.</p><p>Segundo o tradutor, essa mudança de foco opera uma abertura:</p><p>uma pluralidade de exílios se torna mais importante do que certo</p><p>número de exilados.</p><p>Que Exílios deve muito a Henrik Ibsen, é inegável. Os</p><p>interessados em perceber as semelhanças podem começar pela</p><p>última peça do dramaturgo norueguês, Quando despertamos de</p><p>entre os mortos (1899; trad. de Vidal de Oliveira. Rio de Janeiro:</p><p>Globo, 1985), sobre a qual Joyce escreveu um ensaio em 1900 (cf.</p><p>Cronologia). E a proximidade com o naturalismo de Ibsen sem</p><p>dúvida foi uma das causas do pouco sucesso que Exílios teve com o</p><p>público e a crítica: os palcos europeus já estavam em uma onda</p><p>vanguardista; a peça de Joyce chegava com atraso de mais de uma</p><p>década.</p><p>Mas a peça se reabilitou do fiasco (palavra do próprio Joyce)</p><p>inicial da produção de Munique, em 1919, quando Harold Pinter a</p><p>montou em 1970. Além disso, a crítica feita por Hugh Kenner (cf.</p><p>Sugestões de leitura), para quem a peça se recusa a se assumir</p><p>como farsa, pode revelar apenas a dificuldade do crítico em lidar</p><p>com um texto que não cabe em uma definição, como de resto é o</p><p>caso de muitos textos de Joyce. Estamos, então, diante de uma</p><p>peça que não serve para o palco, que chegou com atraso ou que</p><p>simplesmente não foi compreendida em seu tempo?</p><p>récita privada</p><p>Récita privada foi publicado em 1907. Os poemas desse livro são</p><p>posteriores aos que Joyce escreveu na juventude e que coligiu sob</p><p>os títulos Moods [Estados d’alma] e Shine and Dark [Luz e</p><p>escuridão] (cf. Cronologia), publicados postumamente e em estado</p><p>fragmentário. No caso de Joyce, pode-se estabelecer como limite</p><p>temporal para a classificação dos poemas “da juventude” o ano de</p><p>1900. A produção em verso sobrevivente dos anos 1901 a 1903,</p><p>também publicada após sua morte, pode ser classificada como “do</p><p>ciclo de Récita privada” (cf. obras de Joyce organizadas por Aubert</p><p>e por Ellmann et al. em Sugestões de leitura). Os 36 poemas</p><p>incluídos em Récita privada foram escritos entre 1901 e 1904.</p><p>Stanislaus Joyce, irmão do escritor, chegou a afirmar que a</p><p>responsabilidade pela ordem em que os poemas aparecem em</p><p>Récita privada era dele e não de Joyce. E não é uma afirmação sem</p><p>fundamento: no fim de 1906, Joyce comunicou ao irmão, por carta,</p><p>que tinha pouco interesse na publicação dos versos e pediu que ele</p><p>propusesse um arranjo para os poemas. É bem provável, porém,</p><p>que essa história contenha dois exageros: nem Stanislaus terá sido</p><p>o único responsável pelo arranjo dos poemas no livro, nem Joyce</p><p>terá perdido tanto o interesse em sua publicação. O fato é que, entre</p><p>o fim da composição dos poemas e sua publicação em livro, Joyce</p><p>esteve envolvido com Dublinenses e trabalhou em Stephen herói.</p><p>Disso pode-se concluir que a escrita de poesia já não ocupava seu</p><p>tempo. A. W. Litz (cf. Poems and Shorter Writings) sugere que Joyce</p><p>tenha buscado escapar da sentimentalidade empregada na sua</p><p>poesia por meio da objetividade e da ironia que empregou na escrita</p><p>ficcional.</p><p>O título em inglês esconde uma história curiosa. Já na primeira</p><p>edição de seu Diário de Dublin (1962), Stanislaus conta que sugeriu</p><p>o título depois de saber de um episódio ocorrido em 1904 entre</p><p>Joyce e uma prostituta admiradora da voz de tenor de seu irmão.</p><p>Ela teria brincado com a possibilidade de usar o penico como</p><p>acompanhamento para a voz do escritor. A semelhança entre</p><p>chamberpot (penico) e chamber music (música de câmara) era um</p><p>sinal, pensou Stanislaus. Herbert Gorman contou uma versão</p><p>diferente sobre a origem do título. De acordo com sua biografia do</p><p>escritor, publicada em 1941, tendo tomado vários copos de cerveja</p><p>enquanto ouvia Joyce recitar seus poemas, certa viúva que um</p><p>companheiro de Joyce costumava frequentar precisou retirar-se</p><p>para trás de um biombo a fim de se aliviar. A música, por assim</p><p>dizer, produzida pela senhora teria sugerido a Joyce o título do livro.</p><p>Stanislaus chamou de falsa a versão de Gorman.</p><p>Apesar da possível origem anedótica do título, os poemas de</p><p>Récita privada são muito musicais. Arthur Symons, entusiasta da</p><p>literatura simbolista e peça importante na publicação do livro de</p><p>Joyce, ressaltou a musicalidade dos poemas, além de outras</p><p>qualidades, em resenha publicada já em 1907. O título, sem dúvida,</p><p>é apreendido primeiro por sua intenção musical mais nobre do que</p><p>pela sorrateira alusão urinária. O achado tradutório de Galindo</p><p>habilmente combina no título em português o caráter privado do</p><p>ambiente das mais seletas audiências com a privada das salas de</p><p>i</p><p>ii</p><p>iii</p><p>iv</p><p>v</p><p>banho. Como sempre, a literatura de Joyce nos exige ser todo</p><p>ouvidos.</p><p>Nota-se o eco da poesia de Paul Verlaine em Joyce. Em</p><p>inglês, o primeiro verso é “Strings in the earth and air”, em</p><p>que aparece a palavra strings (cordas), usada por Joyce</p><p>em sua tradução do poema de Verlaine, “Canção de</p><p>outono” (“Chanson d’automne”): “A voice that sings/ Like</p><p>viol strings”. No Brasil, este poema de Verlaine já foi</p><p>traduzido por Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos,</p><p>entre outros. O instrumento (“E a mão que assim segura/</p><p>Um instrumento”) pode ser de outra natureza que não a</p><p>musical; como aponta William York Tindall, estudioso de</p><p>Joyce, em sua edição de Chamber Music (Columbia</p><p>University Press, 1954), aí está sugerida a masturbação.</p><p>Segundo Stanislaus, Joyce inicialmente chamou este</p><p>poema de “Commonplace” [Lugar comum]. Tindall aponta o</p><p>eco de “Le piano que baise une main frêle” (“O piano que</p><p>uma mão frágil beija”), de Verlaine.</p><p>Os ventos calmos que sopram acompanhados pelo arfar</p><p>das harpas darão lugar aos ventos felizes (ix) e, por fim,</p><p>aos ventos ferozes (xxix) do fim do amor. O tradutor</p><p>acompanha o uso reiterado que Joyce faz de “harpas”</p><p>(harps) e “Amor” (Love).</p><p>O verso “Não caias mais em devaneio” responde aos</p><p>seguintes versos do poema ii: “Curvada sobre as teclas</p><p>sujas,/ Cabeça assim de lado”.</p><p>Críticos que tiveram acesso a um dos manuscritos desse</p><p>poema registram que alguém que não Joyce inseriu nele</p><p>vi</p><p>vii</p><p>viii</p><p>ix</p><p>dois versos do poema de Lord Tennyson (1809-92) The</p><p>Lady of Shalott (A dama de Shalott, 1833, 1842): “She left</p><p>the web, she left the loom/ She made three paces thro’ the</p><p>room” [“Largou a trama, largou o tear/ E pôs-se a três</p><p>passos andar”]. Vale lembrar que em Um retrato… Stephen</p><p>Dedalus emitiu a seguinte opinião sobre o poeta:</p><p>“Tennyson? Poeta? Ora, ele é um mero poetastro!” (Um</p><p>retrato do artista quando jovem. Trad. de Caetano W.</p><p>Galindo. São Paulo: Penguin-Companhia das Letras, 2016,</p><p>p. 105).</p><p>O “doce seio” da amada é visto como proteção contra</p><p>possíveis “ventos rudes”. Publicado originalmente na</p><p>revista The Speaker, de Londres, em 8 de outubro de 1904,</p><p>com o título de “A Wish” [Um desejo].</p><p>A crítica costuma reconhecer nesse poema uma relação</p><p>com o Cântico dos Cânticos (2,3; 8,5) em virtude da</p><p>menção à macieira. Haroldo de Campos fez uma belíssima</p><p>tradução desse texto bíblico (Éden: um tríptico bíblico.</p><p>Perspectiva, 2004). Publicado originalmente na revista</p><p>Dana, de Dublin, em agosto de 1904, com o título de</p><p>“Song” [Canção].</p><p>A primavera (“estações florais”) faz desabrochar o amor,</p><p>que avança cada vez mais em direção ao calor do verão no</p><p>poema ix (“Ventos de maio”), dá adeus ao “tempo do</p><p>sonho” no poema x e aos dias de menina no poema xi.</p><p>Em 1909, Joyce presenteou Nora com um colar cuja</p><p>inscrição dizia “Love is unhappy when love is away!” (“O</p><p>amor entristece se o amor fica ausente!”).</p><p>x</p><p>xi</p><p>xii</p><p>xiii</p><p>xiv</p><p>xv</p><p>xvi</p><p>O duplo sentido “I come” (“eu venho/ chego” ou “eu gozo”),</p><p>que fecha o verso inglês, ecoa na tradução como “Da vida,</p><p>gozar”.</p><p>Joyce apreciava especialmente este poema, para o qual</p><p>compôs uma melodia. O compositor Edmund Pendleton</p><p>(1899-1987) foi o responsável pela harmonização, a pedido</p><p>de Joyce.</p><p>Segundo Stanislaus, este poema foi escrito por Joyce em</p><p>um pedaço de uma caixa de cigarros, debaixo de uma</p><p>lâmpada de rua, depois de um passeio com Mary Sheehy,</p><p>por quem Joyce se sentia atraído. Ela viria a se casar com</p><p>Thomas Kettle, amigo de Joyce. Publicado originalmente</p><p>em The Venture, an Annual of Art and Literature em</p><p>novembro</p><p>de 1904.</p><p>Este poema ecoa o Cântico dos Cânticos (4,16),</p><p>especialmente por causa do apelo ao vento e da presença</p><p>do jardim.</p><p>Neste poema, ouvimos outra vez o eco do Cântico dos</p><p>Cânticos (1,15; 2,14), sobretudo pela presença da pomba.</p><p>Segundo Stanislaus, o caráter matutino deste poema</p><p>contrasta com o caráter noturno da epifania n. 34 de Joyce,</p><p>que abre assim: “Ela vem à noite quando a cidade está</p><p>parada” (Epifanias. Trad. de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte;</p><p>São Paulo: Autêntica, 2018, p. 85).</p><p>O apelo para que a pessoa amada vá para o vale com o</p><p>amante será retomado no poema xx, em que o refúgio do</p><p>amor será um pinheiral.</p><p>xvii</p><p>xviii</p><p>xix</p><p>xx</p><p>xxi</p><p>xxii-xxiii</p><p>xxiv</p><p>O amigo que se tornou estranho pode ser Oliver St. John</p><p>Gogarty, com quem em setembro de 1904 Joyce morou por</p><p>alguns dias na torre Martello, bastante conhecida dos</p><p>leitores de Ulysses. Gogarty foi o modelo do personagem</p><p>Buck Mulligan do romance.</p><p>A figura do amigo perdido reitera a do estranho do poema</p><p>xvii. Publicado originalmente na revista The Speaker em 30</p><p>de julho de 1904.</p><p>No mesmo tom dos dois poemas anteriores, que</p><p>denunciam amigos que se comportaram mal, este traz um</p><p>alerta à pessoa amada sobre homens que podem</p><p>promover sua desonra: “Vão desonrar você?”.</p><p>O poema é um convite ao abrigo em lugar calmo e seguro,</p><p>longe das ameaças que aparecem nos três poemas</p><p>anteriores.</p><p>Este poema, provavelmente o último a ter sido escrito, data</p><p>de setembro de 1904, pouco antes de Joyce deixar a</p><p>Irlanda com Nora. Um dos manuscritos trazia a dedicatória</p><p>“Para Nora”.</p><p>A alma, que no poema xxi não tem outra “da mesma</p><p>natureza” à qual se juntar, finalmente “toca, enlaça” a sua</p><p>companheira quando os amantes têm seus “braços […]</p><p>entrançados” (xxii) e os corpos “vibra[m] junto[s]” (xxiii).</p><p>Este poema nos leva à poesia da juventude de Joyce. Aqui</p><p>encontramos uma mulher que, ao se pentear, sem querer</p><p>liberta “feitiços” (witchery em inglês). Nos versos da</p><p>juventude, deparamos com a imagem da feiticeira (“woman</p><p>xxv</p><p>xxvi</p><p>xxvii</p><p>of sorcery” e “Lady witchin’”). Publicado originalmente na</p><p>revista The Saturday Review em 14 de maio de 1904.</p><p>A palavra “leve” no primeiro verso anuncia a leveza do</p><p>próprio poema, inspirado, segundo Stanislaus, em Mary</p><p>Sheehy (cf. nota ao poema xii). Joyce adotou um ritmo</p><p>alegre, muito diferente do utilizado nos poemas até aqui.</p><p>Em uma das cartas enviadas a Nora em agosto de 1909,</p><p>estando ele em Dublin e ela em Trieste, Joyce revela ter</p><p>escrito este poema, assim como o xxviii, pensando em</p><p>outra mulher, mas que a beleza de Nora é superior à de</p><p>seus versos. Vale lembrar que Joyce conheceu Nora</p><p>apenas em junho de 1904, quando a maior parte dos</p><p>poemas de Récita privada já estava escrita. Este poema foi</p><p>publicado juntamente com o de número xii em The Venture.</p><p>Samuel Purchas (c. 1575-1626) foi o historiador e autor de</p><p>relatos de viagem em cuja obra o poeta romântico inglês</p><p>Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) teria se inspirado</p><p>para escrever Kubla Khan (1816). Joyce parodiou um</p><p>poema de Coleridge em seus versos de ocasião.</p><p>Raphael Holinshed (?-c. 1580), tradutor e cronista, foi autor</p><p>das Chronicles, de que Shakespeare se utilizou para</p><p>escrever várias de suas peças.</p><p>Neste poema, o amante, menos ingênuo, dá sinais de que</p><p>não pode escapar à “danação”, preço a pagar “por</p><p>desfrutar [do] coração” da pessoa amada. Ele sente</p><p>“maldade” na “ternura” e perde a crença na sua “velha voz”,</p><p>que aqui representa a própria poesia.</p><p>xxviii</p><p>xxix</p><p>xxx</p><p>xxxi</p><p>xxxii</p><p>xxxiii</p><p>xxxiv</p><p>Mitrídates vi (132-63 a.C.) foi o rei do Ponto, na Anatólia,</p><p>que ingeria doses baixas de veneno a fim de aos poucos</p><p>se proteger de uma tentativa de envenenamento.</p><p>Neste poema, o amante pede que a pessoa amada cante</p><p>não o fim do amor, mas o valor do amor que se pode ter</p><p>em vida e ao qual a morte põe fim. Cf. nota ao poema xxvi.</p><p>Neste poema, os alegres ventos do poema ix, agora</p><p>ferozes, se tornam uma ameaça ao amor.</p><p>“Amamos fundo. E teve fim”, diz este poema, corroborando</p><p>o poema xxviii.</p><p>O eu lírico se lembra de quando o “vento de verão” era</p><p>ameno, diferente do vento feroz que começou a soprar no</p><p>poema xxix.</p><p>Donnycarney é um bairro de Dublin.</p><p>Ao mencionar a “via da rememoração”, este poema</p><p>complementa o poema xxx, em que “as vias” a serem</p><p>trilhadas ainda eram desconhecidas.</p><p>Dando sequência ao ciclo das estações, Joyce nos leva ao</p><p>outono, que marca o fim do amor.</p><p>Depois de uma breve passagem pelo outono, atingimos o</p><p>inverno, ou o fim do diminuendo da sequência de poemas,</p><p>como Joyce explicou em carta de 23 de fevereiro de 1921</p><p>ao músico irlandês Geoffrey Molyneux Palmer (1882-1957),</p><p>que musicou 32 poemas de Récita privada.</p><p>O último quarteto deste poema foi usado como despedida</p><p>em uma carta que Joyce enviou a Nora em 19 de agosto</p><p>de 1909.</p><p>xxxv</p><p>xxxvi</p><p>Na mencionada carta a Palmer, Joyce classifica este</p><p>poema e o seguinte como representantes do “despertar da</p><p>mente”. A comunicação do vento com a água é</p><p>“enfadonha”, e a mente que desperta pode pensar</p><p>enquanto o coração dorme. No original, “enfadonho” é</p><p>monotone, que tem a mesma forma da palavra francesa</p><p>que Verlaine usou no fim da primeira estrofe de “Canção de</p><p>outono” (cf. nota ao poema i).</p><p>O despertar da mente se completa com este poema, que é</p><p>diferente dos demais na forma e no teor. Os elementos da</p><p>natureza se associam aos da guerra (“trovão dos cavalos”,</p><p>“espuma nos jarretes”), e o vocabulário se renova com</p><p>termos estranhos à dicção dos poemas anteriores</p><p>(“exército”, “couraças de guerra”, “bigas”, “bigorna”). O</p><p>amor não é esperança nem resignação, mas desespero:</p><p>“Amor, amor, amor, por que me deixaste só?”. Segundo</p><p>Stanislaus, este poema adveio de um sonho que Joyce</p><p>teve e o perturbou.</p><p>Ezra Pound publicou este poema na antologia Des</p><p>Imagistes (1914).</p><p>trocados porversos</p><p>De forte teor autobiográfico, o segundo e último livro de poemas de</p><p>Joyce, Trocados porversos (Pomes Penyeach) tem treze poemas</p><p>localizados, datados e dispostos em ordem cronológica. Nele,</p><p>seguimos o percurso Dublin-Trieste-Zurique-Paris, de 1904 a 1924.</p><p>O roteiro é bem semelhante ao que Joyce assinala no fim de</p><p>Ulysses (Trieste-Zurique-Paris), e os anos de composição dos</p><p>poemas também são bastante próximos aos de Ulysses (1914-21),</p><p>já que, com exceção do primeiro poema, escrito em Dublin em 1904,</p><p>os demais foram escritos em Trieste, Zurique ou Paris entre 1912 e</p><p>1924.</p><p>No intervalo de doze anos entre 1912 e 1924, Joyce publicou</p><p>Dublinenses (1914), terminou de escrever Um retrato do artista</p><p>quando jovem (1916), escreveu Exílios (1918) e Ulysses (1922) e</p><p>começou Finnegans Wake (1939). Nenhum poema escrito depois de</p><p>1924 entrou em Trocados porversos, de 1927. Pelo que chegou até</p><p>os nossos dias, menos de dez poemas foram escritos nessa janela</p><p>de três anos, todos versos de ocasião. Trocados porversos,</p><p>portanto, está fora do período da produção poética efervescente de</p><p>Joyce, que vai da segunda metade de 1890 até 1904, quando ele</p><p>conclui os poemas de Récita privada.</p><p>A livraria Shakespeare and Company, que já se convertera em</p><p>editora uma vez para publicar Ulysses, agora fazia o mesmo por</p><p>Trocados porversos, que veio a lume em um livrinho de 24 páginas.</p><p>Mas por que Joyce teria se dado ao trabalho de reunir poemas</p><p>“Quebra”</p><p>esparsos e buscar quem os publicasse em pleno processo de</p><p>escrita de Finnegans Wake? A explicação pode ser simples. As</p><p>passagens de Finnegans Wake que vinham sendo publicadas em</p><p>revistas literárias desde 1924, ainda com o título de Work in</p><p>Progress [Obra em curso] (cf. Cronologia), vinham recebendo</p><p>algumas críticas severas. Por isso, segundo Ellmann, Joyce pode</p><p>ter vislumbrado em Trocados porversos um modo de acalmar a</p><p>crítica, provando que era capaz de escrever de forma clara. O</p><p>resultado foi inócuo, pois o livro, pouco impressionante vindo do</p><p>autor de Ulysses, não foi capaz de mudar a opinião dos críticos.</p><p>Assim como Chamber Music, o título Pomes Penyeach merece</p><p>comentários. Joyce altera a previsível palavra poems (poemas) a fim</p><p>de forjar pomes (frutas, como maçãs) e com isso criar uma</p><p>ambiguidade. Afinal, trata-se de um livro de poesia ou de um folheto</p><p>de mercearia? E o preço, já baixo — one penny each (um pêni</p><p>cada) —, é rebaixado ainda mais pelo autor, que come uma letra (n)</p><p>e economiza espaço juntando as duas palavras em “penyeach”. O</p><p>título corresponde ao conteúdo do livro, cujo preço sugerido era um</p><p>xelim, ou seja, o equivalente a doze pence, fazendo com que cada</p><p>poema custasse um pêni. Mas, espere, o livro não tem treze</p><p>poemas? Sim. E o primeiro se chama “Tilly”, que significa lambuja,</p><p>choro, inhapa etc., algo que o vendedor dá “de quebra”, de agrado,</p><p>ao freguês. O primeiro poema do livro, portanto, não custa sequer</p><p>um trocado.</p><p>Este poema primeiro se chamou “Cabra”, bairro</p><p>de Dublin onde Joyce morava quando o poema foi</p><p>escrito. A palavra portuguesa “quebra” tem</p><p>semelhança sonora com o primeiro título. Joyce</p><p>“Olhando</p><p>os botes em</p><p>San Sabba”</p><p>“Uma flor</p><p>dada a</p><p>minha filha”</p><p>renomeou o poema como “Ruminants”</p><p>[Ruminantes] mais de dez anos depois e escolheu</p><p>o título definitivo, “Tilly”, provavelmente bem perto</p><p>da publicação de Trocados porversos. O “ramo</p><p>arrancado” do último verso pode ser a imagem da</p><p>mãe de Joyce, que acabara de morrer. A</p><p>expressão também sugere o exílio e o abalo na</p><p>amizade, tema presente em Récita privada (cf.</p><p>nota aos poemas xvii-xix), livro em que Joyce</p><p>cogitou incluir “Quebra”.</p><p>Quando morava em Trieste, Joyce acompanhou</p><p>uma regata em San Sabba na qual seu irmão</p><p>Stanislaus competia. Ao chegarem à areia, os</p><p>competidores cantavam uma ária da ópera La</p><p>fanciulla del West [A garota do oeste], de Giacomo</p><p>Puccini, que diz “Aspetterà ch’io torni… Ed io non</p><p>tornerò ed io non tornerò”, na qual reconhecemos</p><p>a inspiração para os versos “Jamais, não tornes</p><p>mais!” e “Tornar, jamais tornar”. Publicado</p><p>originalmente na revista The Saturday Review, de</p><p>Londres, em 20 de setembro de 1913.</p><p>Este poema tem relação direta com Giacomo</p><p>Joyce, obra escrita em Trieste e para a qual o</p><p>professor Joyce teve como musa uma de suas</p><p>alunas de inglês. Não se sabe quem foi a aluna,</p><p>mas a biografia de Joyce levanta três</p><p>possibilidades — Amalia Popper, Emma Cuzzi e</p><p>“Ela chora</p><p>por Rahoon”</p><p>Anna Maria (Annie) Schleimer —, com franca</p><p>vantagem para a primeira. Uma delas teria</p><p>presenteado Lucia com uma flor, momento</p><p>transposto para Giacomo Joyce da forma a seguir:</p><p>“A flower given by her to my daughter. Frail gift,</p><p>frail giver, frail blue-veined child”. Na tradução de</p><p>Galindo, lemos “Uma flor por ela dada a minha</p><p>filha. Dádiva frágil, frágil quem dá, frágil menina de</p><p>veias azuis” (Finn’s Hotel. São Paulo: Penguin-</p><p>Companhia das Letras, 2013). Notamos que o</p><p>título original deste poema (“A Flower Given to My</p><p>Daughter”) e o início do fragmento de Giacomo</p><p>Joyce são praticamente coincidentes. Podemos</p><p>notar, também, a repetição de “frágil”. Publicado</p><p>originalmente na revista Poetry, de Chicago, em</p><p>maio de 1917.</p><p>Este poema toca fortemente em “Os mortos”. No</p><p>referido conto, Michael Furey é o personagem</p><p>que, apaixonado por Greta Conroy na juventude,</p><p>morre depois de, doente, enfrentar a chuva para</p><p>vê-la. Os personagens Michael Furey e Greta</p><p>Conroy foram inspirados em Michael Bodkin e</p><p>Nora Barnacle, que se conheceram em Galway,</p><p>cidade natal de Nora, antes de ela partir para</p><p>Dublin, onde conheceria Joyce. Rahoon é o local</p><p>em que Michael Bodkin foi enterrado (cf. nota 43</p><p>em Exílios). Outra ponte entre este poema e “Os</p><p>mortos” está no emprego de “cai leve, leve cai”,</p><p>“Tutto</p><p>è sciolto”</p><p>“Na praia</p><p>em Fontana”</p><p>referente ao cair da chuva, lembrando a neve que,</p><p>no conto, “suave caía […] caía suave” sobre o</p><p>túmulo de Michael Furey (Dublinenses. Trad. de</p><p>Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin-</p><p>Companhia das Letras, 2018). Publicado</p><p>originalmente na revista Poetry em novembro de</p><p>1917.</p><p>O título deste poema, retirado da ópera La</p><p>sonnambula [A sonâmbula, 1831], de Vincenzo</p><p>Bellini (1801-35), se traduz por “tudo acabado”. Na</p><p>ópera, Amina, noiva de Elvino, entra no quarto de</p><p>Rodolfo em estado de sonambulismo. Sem saber</p><p>da inocência da noiva, Elvino diz: “Tutto è sciolto.</p><p>Oh, dì funesto!/ Più per me non v’ha conforto/ Il</p><p>mio cor per sempre è morto/ Alla gioia ed all’amor”</p><p>[Tudo acabado. Oh, dia funesto!/ A mim não resta</p><p>mais conforto/ Meu coração p’ra sempre morto/</p><p>Para a alegria e para o amor]. A referência ao</p><p>ocorrido entre Elvino e Amina permite que</p><p>façamos a correlação com o episódio da vida de</p><p>Joyce em que ele injustamente acusou Nora de</p><p>infidelidade (cf. ano 1909 na Cronologia).</p><p>Publicado originalmente na revista Poetry em</p><p>maio de 1917.</p><p>O título deste poema pode nos fazer pensar na</p><p>Fontana dei Quattro Continenti, que se encontra</p><p>na Piazza Unità d’Italia, em Trieste. Mas, a</p><p>“Simples”</p><p>“Enchente”</p><p>“Noturno”</p><p>referência é outra. Como o próprio Joyce anotou</p><p>em um de seus cadernos, depois de seu filho</p><p>Giorgio ter vindo à luz, ele o levou no colo até o</p><p>Balneário Fontana, nome que se deve a seu</p><p>proprietário, Carlo Ottavio Fontana. Publicado</p><p>originalmente na revista Poetry em novembro de</p><p>1917.</p><p>“Simples” é, tanto em português quanto em inglês,</p><p>palavra arcaica que designa uma erva</p><p>medicamentosa. Enquanto o poema anterior era</p><p>dedicado ao filho, Giorgio, este é dedicado à sua</p><p>filha, Lucia, aquela que “colhe os simples do luar”.</p><p>A epígrafe (“Ó bela loira/ És como a onda”) foi</p><p>adaptada por Joyce de uma canção popular</p><p>italiana. Publicado originalmente na revista Poetry</p><p>em maio de 1917.</p><p>A crítica tem associado a linguagem deste poema</p><p>à usada no terceiro episódio de Ulysses, “Proteu”.</p><p>Ellmann, na organização de Poems and Shorter</p><p>Writings de Joyce (cf. Sugestões de leitura),</p><p>associa o poema à paixão de Joyce pela aluna</p><p>triestina que inspirou Giacomo Joyce (cf. nota ao</p><p>poema “Uma flor dada a minha filha”). Publicado</p><p>originalmente na revista Poetry em maio de 1917.</p><p>Assim como “Uma flor dada a minha filha”, este</p><p>poema tem vínculo com Giacomo Joyce. Por</p><p>“Só”</p><p>“Lembrança</p><p>dos atores</p><p>num espelho</p><p>à meia-noite”</p><p>exemplo, “Nave-pecado-negrume” é semelhante a</p><p>“nave negra de pecado”, do episódio da entrada</p><p>na Notre-Dame de Paris em Giacomo Joyce (trad.</p><p>de Caetano W. Galindo). O vocabulário de</p><p>“Noturno” é claramente ligado ao serviço religioso:</p><p>“arcos”, “nave”, “serafim”, “incensário”, “sino”,</p><p>“incenso”. Não se pode estabelecer qual dos</p><p>textos foi escrito primeiro, mas Aubert (cf. a</p><p>organização de Œuvres, de Joyce, feita por Aubert</p><p>em Sugestões de leitura) lembra que, ao desistir</p><p>de publicar Giacomo Joyce, o escritor passou a</p><p>reaproveitar fragmentos desse texto em outras</p><p>obras suas. Publicado originalmente na revista</p><p>Poetry em maio de 1917.</p><p>Este poema nasceu das caminhadas noturnas de</p><p>Joyce ao longo do lago de Zurique. Publicado</p><p>originalmente na revista Poetry em novembro de</p><p>1917.</p><p>O poema é resultado da atuação de Joyce na</p><p>companhia amadora de teatro The English Players</p><p>[Os atores ingleses] (cf. ano de 1918 na</p><p>Cronologia). Frank Budgen, no relato de suas</p><p>conversas com Joyce (James Joyce and the</p><p>Making of Ulysses, 1934), revela que o escritor</p><p>chegou a cantar em off na apresentação que a</p><p>companhia fez de In a Balcony (1853), peça de</p><p>um ato de Robert Browning, e que a ocasião teria</p><p>“Bahnhofstrasse”</p><p>“Uma oração”</p><p>“Ecce puer”</p><p>inspirado Joyce a escrever “Lembrança…”.</p><p>Publicado originalmente nas revistas Poesia, de</p><p>Milão, em abril de 1920, e Dial, de Nova York, em</p><p>julho de 1920.</p><p>Bahnhofstrasse é o nome da rua onde, em 1917,</p><p>Joyce sofreu uma crise de glaucoma. É possível</p><p>que o incidente tenha ocorrido em outra cidade e</p><p>Joyce tenha apenas escrito o poema em Zurique.</p><p>As metáforas usadas por Joyce sugerem imagens</p><p>dobradas (“estrela dupla”, “sobreposta”) e</p><p>sensibilidade à luz solar (“astro do mal”).</p><p>Publicado originalmente na revista The Anglo-</p><p>French Review, de Londres, em agosto de 1919.</p><p>Neste poema, o eu lírico submete-se aos</p><p>caprichos de uma mulher, que comanda: “Vem,</p><p>cede à minha força”. Nasce a “dor da submissão”</p><p>quando a “dominadora” o “cega” com sua “negra</p><p>proximidade”. Aubert (cf. a organização de</p><p>Œuvres, de Joyce, feita por Aubert em Sugestões</p><p>de leitura) aproxima a linguagem deste poema à</p><p>das “cartas sujas” de Joyce a Nora, em especial a</p><p>de 13 de dezembro de 1909, em que se</p><p>lê:</p><p>“Adoraria ser chicoteado por você, Nora querida”.</p><p>Embora anuncie a chegada de um menino, “Ecce</p><p>puer” [Eis o menino] é a um só tempo o poema em</p><p>que Joyce louva o nascimento do neto e chora a</p><p>morte do pai. John Stanislaus Joyce morreu em</p><p>29 de dezembro de 1931, aos 82 anos, e foi</p><p>levado ao cemitério Prospect, em Glasnevin, em</p><p>1o de janeiro de 1932. No dia em que recebeu a</p><p>notícia da morte do pai, Joyce chorou longamente.</p><p>No entanto, e mesmo sem ver o pai desde 1912,</p><p>não compareceu às obséquias. O escritor ainda</p><p>não era bem-vindo à Irlanda e precisou se</p><p>contentar com o envio de uma coroa que dizia:</p><p>“Com tristeza e amor do Jim”. No testamento,</p><p>John fez de James Joyce seu único herdeiro, mas</p><p>o que de melhor o escritor pôde ter herdado do pai</p><p>foi a qualidade de bom contador de histórias, uma</p><p>herança da qual ele já se servia fazia anos.</p><p>Stephen James Joyce, filho de Giorgio e Helen</p><p>Joyce e único neto do escritor, nasceu em 15 de</p><p>fevereiro de 1932. Joyce ficou muito feliz e</p><p>escreveu “Ecce puer” no mesmo dia. Duas cartas</p><p>escritas para o neto em 1936 viraram livros</p><p>postumamente: O gato e o diabo e Os gatos de</p><p>Copenhague. Nelas, notamos o carinho de Joyce</p><p>pelo neto. Em 1941, em Zurique, quando voltaram</p><p>para casa depois de terem encontrado Joyce</p><p>morto no hospital, Nora e Giorgio foram</p><p>surpreendidos pelo alerta de bombas e se</p><p>esconderam com Stephen. No abrigo, o menino,</p><p>que no mês anterior completara nove anos, logo</p><p>perguntou pelo nonno e recebeu a resposta de</p><p>que ele estava bem. Stephen Joyce se dizia um</p><p>Joyce, e não um Joycean (joyciano), para marcar</p><p>a diferença entre ele e os pesquisadores.</p><p>Polêmico, o administrador do espólio do escritor</p><p>declarou publicamente ter destruído inúmeras</p><p>cartas de sua tia Lucia, pois não queria que o</p><p>público em geral e os pesquisadores jamais</p><p>pusessem os olhos nelas. Sua atuação retardou a</p><p>divulgação de partes da obra de Joyce e causou</p><p>danos irreparáveis aos estudos joycianos. Casou-</p><p>se com Solange Raytchine em 15 de abril de</p><p>1955, aposentou-se pela Organização para a</p><p>Cooperação e Desenvolvimento Econômico em</p><p>1991 e morreu em 23 de janeiro de 2020.</p><p>1882</p><p>1888</p><p>1891</p><p>1893</p><p>Cronologia</p><p>James Augustine Joyce nasce às seis horas da manhã do</p><p>dia 2 de fevereiro, na residência da família, na Brighton</p><p>Square, 41, Rathgar, Dublin. É o primeiro filho de John</p><p>Stanislaus Joyce e Mary (May) Jane Joyce (née Murray).</p><p>Entra para o internato jesuíta Clongowes Wood College, no</p><p>condado de Kildare, em 1o de setembro (alguns biógrafos</p><p>registram 30 de agosto).</p><p>Na escola, ao ser crismado, escolhe são Luís Gonzaga</p><p>como seu patrono, passando a se chamar James</p><p>Augustine Aloysius Joyce. Escreve “Et tu Healy”, seu</p><p>primeiro poema, do qual ele e seu irmão mais tarde</p><p>resgatarão alguns versos de memória. Na escola, atua em</p><p>um papel secundário na peça burlesca Aladdin, or the</p><p>Wonderful Scamp [Aladim, ou o maravilhoso malandro]. No</p><p>fim do ano, deixa o Clongowes Wood College por</p><p>dificuldades financeiras da família.</p><p>Depois de cerca de um ano fora das salas de aula,</p><p>frequenta a escola dos Christian Brothers, de pouco</p><p>prestígio, fato que mais tarde omitirá de seu romance</p><p>1894-7</p><p>1898</p><p>1899</p><p>autobiográfio, Um retrato do atista quando jovem. Em 6 de</p><p>abril, ingressa no Belvedere College, instituição de ensino</p><p>jesuíta de tempo parcial situada em Dublin.</p><p>Por seu desempenho escolar, ganha um prêmio de vinte</p><p>libras (cerca de 2500 libras em valores de 2022) em 1894</p><p>(no nível preparatório) e outro de igual valor em 1895 (no</p><p>nível júnior). Os resultados chamam a atenção dos</p><p>dominicanos, que tentam cooptar Joyce, mas ele prefere</p><p>continuar sua educação com os jesuítas. Depois de não se</p><p>submeter aos exames em 1896 por ser jovem demais para</p><p>avançar ao nível médio, Joyce repete o êxito dos anos</p><p>anteriores em 1897 (no nível médio), quando recebe um</p><p>prêmio de trinta libras, e em 1898 (no nível sênior). O</p><p>prêmio do último ano, porém, será retido.</p><p>Na segunda metade da década de 1890, escreve uma</p><p>série de textos curtos em prosa, que chama de Silhouettes</p><p>[Silhuetas]. Também reúne seus poemas sob o título</p><p>Moods [Estados d’alma], ao qual se segue Shine and Dark</p><p>[Luz e escuridão]. Dos fragmentos em prosa, nada</p><p>sobreviverá. Dos poemas escritos na juventude, apenas</p><p>fragmentos chegarão a nós.</p><p>Atua pela segunda vez como ator, agora na peça Vice-</p><p>versa, no Belvedere College. Termina os estudos no</p><p>Belvedere em junho e ingressa na University College</p><p>Dublin em setembro.</p><p>Em 8 de maio, aplaude entusiasmado a estreia da</p><p>polêmica peça A condessa Cathleen, de William Butler</p><p>1900</p><p>1901</p><p>1902</p><p>Yeats. No dia seguinte, se recusa a assinar uma carta-</p><p>protesto contra a obra.</p><p>Em abril, publica “Ibsen’s New Drama” [O novo drama de</p><p>Ibsen], ensaio sobre a peça Quando despertamos de entre</p><p>os mortos, de Henrik Ibsen. A admiração que nutre pelo</p><p>dramaturgo é tanta que, no ano seguinte, lhe enviará uma</p><p>carta de felicitação em norueguês pelo seu 73o aniversário.</p><p>Durante as férias de verão em Mullingar, escreve sua</p><p>primeira peça de teatro, A Brilliant Carrer [Uma carreira</p><p>brilhante], que destruirá em 1902. Dela, resta apenas a</p><p>folha de rosto, quatro versos de uma canção cigana e a</p><p>dedicatória: “À minha própria Alma eu dedico o primeiro</p><p>verdadeiro trabalho de minha vida”. Por volta de 1900,</p><p>escreve a peça em versos Dream Stuff [Matéria de sonho],</p><p>da qual sobreviverão apenas sete versos. Entre 1900 e</p><p>1904, redige mais de setenta fragmentos em prosa, série</p><p>que chama de “epifanias”. Quarenta deles serão publicados</p><p>postumamente.</p><p>Novamente em Mullingar para as férias de verão, traduz do</p><p>alemão as peças Vor Sonnenaufgang (Antes do</p><p>amanhecer) e Michael Kramer, de Gerhart Hauptmann, que</p><p>considera herdeiro direto de Ibsen, sendo o próprio Joyce o</p><p>seguinte na linha sucessória. A tradução da primeira peça</p><p>sobreviverá para ser publicada em 1978 (cf. Sugestões de</p><p>leitura). Começa a escrever os poemas que darão origem a</p><p>Récita privada.</p><p>Em 31 de outubro, recebe da Royal University of Ireland o</p><p>diploma de bacharel em artes (letras modernas). Deixa</p><p>1903</p><p>1904</p><p>Dublin em 1o de dezembro com a intenção de estudar</p><p>medicina em Paris. Passando por Londres, encontra Yeats,</p><p>que lhe oferece ajuda e o apresenta ao poeta Arthur</p><p>Symons. No fim do mês, em viagem de volta a Dublin,</p><p>reencontra Yeats em Londres e lhe diz ter escolhido o</p><p>caminho da literatura.</p><p>Em janeiro, já se encontra novamente em Paris, mas em</p><p>abril precisa regressar às pressas a Dublin depois de</p><p>receber um telegrama do pai avisando que a mãe está à</p><p>beira da morte. Mary Joyce morre de cirrose hepática em</p><p>13 de agosto.</p><p>Escreve “Tilly” (“Quebra”), o mais antigo dos poemas que</p><p>serão reunidos em Pomes Penyeach (Trocados porversos).</p><p>Escreve o ensaio “A Portrait of the Artist” [Um retrato do</p><p>artista], recusado pela revista Dana. Partindo da ideia do</p><p>ensaio, começa a escrever Stephen herói, projeto que</p><p>transformará no romance Um retrato do artista quando</p><p>jovem. Publica o poema satírico “The Holy Office” [O santo</p><p>ofício]. Em maio, ganha a medalha de bronze no concurso</p><p>de tenores do Feis Ceoil, festival de música de Dublin.</p><p>Conhece Nora Joseph Barnacle, que trabalha como</p><p>camareira no Finn’s Hotel, com quem tem o primeiro</p><p>encontro amoroso em 16 de junho, dia em que se passa a</p><p>maior parte da história de Ulysses.</p><p>Yeats não aceita montar as traduções das peças de</p><p>Hauptmann no Irish Literary Theater (antecessor do Abbey</p><p>Theater).</p><p>1905</p><p>1906</p><p>1907</p><p>1908</p><p>1909</p><p>Sem se casar, Joyce e Nora deixam Dublin em 8 de</p><p>outubro rumo a Trieste, cidade culturalmente italiana, mas</p><p>que no momento pertence ao Império Austro-Húngaro.</p><p>Depois de alguns meses em Pula, na Croácia, onde</p><p>trabalha na escola de idiomas Berlitz (as filiais de Pula e</p><p>Trieste pertencem a Almidano Artifoni, cujo nome</p><p>aparecerá no Ulysses), finalmente se transfere para</p><p>Trieste, onde em 27 de julho nasce seu filho, Giorgio Joyce.</p><p>Intensifica as negociações com Grant Richards para a</p><p>publicação de Dublinenses. Em 1o de agosto, começa a</p><p>trabalhar na área de correspondência do banco Nast-Kolb</p><p>e Schumacher, em Roma.</p><p>Arthur Symons articula com Elkin Mathews a publicação de</p><p>Récita privada, referindo-se à obra como A Book of Thirty</p><p>Songs for Lovers [Um livro de trinta canções para</p><p>amantes], título depois descartado por Joyce.</p><p>Regressa à escola de idiomas Berlitz de Trieste, cidade</p><p>onde nasce sua filha, Lucia Anna Joyce, em 26 de julho.</p><p>Escreve “Os mortos”, último conto de Dublinenses. Elkin</p><p>Mathews publica Récita privada em 6 de maio.</p><p>Começa a negociar com George Roberts e Joseph Hone,</p><p>da editora Maunsel and Company, de Dublin, a publicação</p><p>de Dublinenses. Tem aulas de canto com Romeo Bartoli.</p><p>Chega a Dublin com Giorgio em 29 de julho. Vincent</p><p>Cosgrave (o Lynch de Um retrato…) maldosamente lhe diz</p><p>que andou com Nora no verão de 1904, o que leva Joyce a</p><p>ter uma crise de ciúmes e escrever para a mulher</p><p>acusando-a de infidelidade, numa correspondência que</p><p>1910</p><p>1911</p><p>1912</p><p>1913</p><p>1914</p><p>culminará nas famosas “cartas sujas”, de natureza</p><p>francamente erótica. Em 19 de agosto, firma contrato com</p><p>a Maunsel and Company.</p><p>Em 26 de agosto, visita a mãe de Nora em Galway. Chega</p><p>a Trieste em 13 de setembro e parte novamente para</p><p>Dublin, dessa vez sozinho, em 18 de outubro. Lá, inaugura,</p><p>em 20 de dezembro, o cinematógrafo Volta, parte de um</p><p>empreendimento no qual está envolvido.</p><p>Volta a Trieste em janeiro. O empreendimento do Volta</p><p>fracassa e o cinema é vendido.</p><p>Escreve “A Curious History” [Uma história curiosa], sobre</p><p>as dificuldades que encontra para publicar Dublinenses, e</p><p>envia o texto a diversos jornais.</p><p>Entre julho e setembro visita a Irlanda (Dublin e Galway)</p><p>pela última vez.</p><p>John Falconer, dono da tipografia que presta serviços para</p><p>a Maunsel and Company, temendo ser processado pelo</p><p>teor dos contos, guilhotina (queima, segundo Joyce) a</p><p>tiragem de mil exemplares de Dublinenses. Joyce contra-</p><p>ataca escrevendo o poema satírico “Gas from a Burner”</p><p>[Gás de um bico] no caminho de volta a Trieste.</p><p>Em novembro, começa a fazer anotações para a peça</p><p>Exílios. Ezra Pound solicita a Joyce permissão para incluir</p><p>o último poema de Récita privada, que agradara a Yeats,</p><p>em sua antologia Des Imagistes (1914).</p><p>Em fevereiro, Um retrato… começa a ser publicado de</p><p>forma seriada na revista literária londrina The Egoist,</p><p>graças aos esforços de Pound. Grant Richards publica</p><p>1915</p><p>1916</p><p>1917</p><p>1918</p><p>1919</p><p>1920</p><p>Dublinenses em Londres em 15 de junho. Escreve</p><p>Giacomo Joyce. Começa a escrever Ulysses.</p><p>Conclui Exílios em março. Em junho, muda-se para</p><p>Zurique. Em setembro, a Egoist conclui a publicação de</p><p>Um retrato…</p><p>Um retrato… é publicado por B. W. Huebsch, nos Estados</p><p>Unidos, em 29 dezembro.</p><p>Yeats recusa Exílios para o Abbey Theater, alegando que é</p><p>“o tipo de peça que nunca fizemos bem”.</p><p>Os episódios de Ulysses começam a ser publicados nos</p><p>Estados Unidos pela revista literária The Little Review,</p><p>novamente com o auxílio de Pound. Com Claud Sykes, cria</p><p>a companhia amadora de teatro The English Players, cujo</p><p>objetivo é montar peças em inglês em Zurique. Elkin</p><p>Mathews publica a segunda edição de Récita privada. A</p><p>editora B. W. Huebsch lança a primeira edição norte-</p><p>americana de Récita privada, em Nova York, logo depois</p><p>de a editora The Cornhill Company ter publicado uma</p><p>edição não autorizada em Boston. Exílios é publicada por</p><p>Grant Richards em Londres e por Huebsch em Nova York</p><p>em 25 de maio.</p><p>Alguns episódios de Ulysses são publicados pela Egoist.</p><p>Exílios estreia no Schauspielhaus de Munique em 7 de</p><p>agosto, provavelmente com a ajuda de Stefan Zweig. Joyce</p><p>não consegue visto de entrada na Alemanha para assistir à</p><p>estreia, que é um fracasso.</p><p>Muda-se para Paris em julho. A circulação de Ulysses é</p><p>proibida nos Estados Unidos, onde exemplares da Little</p><p>1921</p><p>1922</p><p>1923</p><p>1924</p><p>1925</p><p>1926</p><p>1927</p><p>1928</p><p>1929</p><p>Review com partes do romance são queimados. Carlo</p><p>Linati traduz Exílios para o italiano (Esuli).</p><p>Termina de escrever Ulysses.</p><p>A livraria Shakespeare and Company, de Sylvia Beach,</p><p>publica Ulysses em 2 de fevereiro. Em outubro, Joyce</p><p>começa a fazer anotações para Finnegans Wake.</p><p>Em março, começa a escrever Finnegans Wake, que,</p><p>antes de sair em livro, em 1939, será conhecido como</p><p>Work in Progress [Obra em curso]. (Em 1938, Eugene</p><p>Jolas surpreenderá Joyce ao adivinhar o título da obra.) Sai</p><p>a terceira edição de Récita privada pela Egoist Press.</p><p>Trechos de Work in Progress são publicados na</p><p>Transatlantic Review. Até 1938, quase todo o livro terá sido</p><p>publicado em revistas literárias, principalmente na</p><p>parisiense transition, ou em pequenos livros.</p><p>Primeira montagem de Exílios em inglês no teatro</p><p>Neighborhood Playhouse de Nova York em 19 de fevereiro.</p><p>A crítica se divide.</p><p>Montagem de Exílios no Regent Theatre de Londres em 14</p><p>e 15 de fevereiro. A crítica não gosta.</p><p>Em 5 de julho, a Shakespeare and Company publica</p><p>Trocados porversos.</p><p>Conhece o dublinense Samuel Beckett, que acaba de</p><p>chegar a Paris. Os dois se tornam grandes amigos.</p><p>Adrienne Monnier, proprietária da livraria Maison des Amis</p><p>des Livres, publica a primeira tradução francesa de</p><p>Ulysses, feita por Auguste Morel, com assistência de Stuart</p><p>Gilbert e revisão de Valery Larbaud e do próprio Joyce.</p><p>1930</p><p>1931</p><p>1932</p><p>1933</p><p>1934</p><p>1935</p><p>1936</p><p>1937</p><p>1938</p><p>Exílios é encenada em alemão (Verbannte) no Deutsches</p><p>Volkstheater de Berlim em 9 de março. No mês seguinte,</p><p>estreia em italiano no Teatro Convegno de Milão.</p><p>Na Inglaterra, em 4 de julho, data do aniversário de seu</p><p>pai, casa-se com Nora.</p><p>O pai do autor, John Stanislaus Joyce, morre em Dublin em</p><p>29 de dezembro, mas Joyce não pode ir ao funeral.</p><p>Nasce Stephen James Joyce, filho de Giorgio. O intervalo</p><p>de menos de dois meses entre a morte do pai e o</p><p>nascimento do neto motiva o último e um dos mais bonitos</p><p>poemas de Joyce, “Ecce puer”, publicado pela primeira vez</p><p>na revista The New Republic, de Nova York, em 30 de</p><p>novembro.</p><p>Fim da proibição de Ulysses nos Estados Unidos.</p><p>Em 25 de janeiro, a Random House publica a primeira</p><p>edição autorizada de Ulysses nos Estados Unidos.</p><p>Em 14 de janeiro, ouve a suíte Lebendig begraben</p><p>[Enterrado vivo], de Othmar Schoeck, composta sobre o</p><p>poema homônimo de Gottfried Keller. Encantado, no dia</p><p>seguinte Joyce visita o compositor. Mais tarde, traduzirá</p><p>parte do poema de Keller para o inglês.</p><p>A Black Sun Press, de Nova York, publica uma edição</p><p>limitada da poesia completa de Joyce, Collected Poems,</p><p>com a íntegra de Récita privada e Trocados porversos e o</p><p>poema “Ecce puer”.</p><p>A Viking Press, de Nova York, publica Collected Poems.</p><p>Em 14 de janeiro, recebe de Hauptmann um exemplar de</p><p>Michael Kramer autografado.</p><p>1939</p><p>1940</p><p>1941</p><p>1948</p><p>1951</p><p>1958</p><p>1966</p><p>Em 4 de maio, a londrina Faber and Faber e a Viking Press</p><p>lançam Finnegans Wake simultaneamente.</p><p>Em razão da guerra, leva a família da França para a Suíça</p><p>em 14 de dezembro, chegando a Zurique no dia 17. Não</p><p>consegue levar Lucia, internada em Pornichet com</p><p>problemas mentais, mas, da Suíça, continua travando</p><p>esforços para que ela se junte à família.</p><p>Em 10 de janeiro, é levado ao hospital Schwesternhaus</p><p>von Roten Kreuz com fortes dores de estômago. Detectada</p><p>uma úlcera duodenal perfurada, Joyce é operado no dia</p><p>seguinte. Morre no dia 13, às 2h15, antes de completar 59</p><p>anos. A autópsia aponta úlcera perfurada e peritonite</p><p>generalizada. No dia 15, é sepultado em Zurique em uma</p><p>cova simples do cemitério Fluntern.</p><p>O corpo de Yeats é repatriado para a Irlanda, o que leva</p><p>Nora a pensar que o governo irlandês possa prestar a</p><p>mesma homenagem a Joyce. Mas as relações de seu</p><p>marido com a Irlanda católica ainda impedem esse gesto</p><p>de reconciliação.</p><p>Nora morre em Zurique em 10 de abril. É enterrada no</p><p>Fluntern, mas não ao lado de Joyce.</p><p>Marjorie Barkentin adapta para o teatro o episódio 15 de</p><p>Ulysses, “Circe”, com o título de Ulysses in Nighttown.</p><p>Em 16 de junho, Bloomsday, é realizada a cerimônia de</p><p>transferência dos corpos de Joyce e Nora para uma</p><p>sepultura honorária no cemitério Fluntern, oferecida pela</p><p>cidade de Zurique. Ao lado da sepultura é inaugurada a</p><p>estátua de Joyce feita por Milton Hebald.</p><p>1970</p><p>1973</p><p>1976</p><p>1982</p><p>2020</p><p>Exílios estreia em Londres, no Mermaid Theatre, em 12 de</p><p>novembro, com montagem de Harold Pinter. Essa</p><p>montagem se tornará</p><p>referência na história da peça.</p><p>Exílios é encenada na Irlanda pela primeira vez, em 21 de</p><p>fevereiro, no Peacock Theatre, teatro que integra o Abbey</p><p>Theatre.</p><p>Giorgio morre em 12 de junho na Alemanha.</p><p>Lucia morre em 12 de dezembro em Northampton, na</p><p>Inglaterra, no hospital St. Andrew, onde estava internada</p><p>desde 1951. Está enterrada no cemitério Kingsthorpe, hoje</p><p>local de comemoração do Bloomsday.</p><p>Stephen, neto de Joyce, morre em 23 de janeiro na França.</p><p>Sugestões de leitura</p><p>burgess, Anthony. Homem comum enfim: Uma introdução a James</p><p>Joyce para o leitor comum. Trad. de José Antonio Arantes. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras, 1994. [Apesar de seu título fazer</p><p>referência a um personagem de Finnegans Wake, é uma</p><p>introdução às obras de Joyce. Burgess foi um dos maiores</p><p>admiradores do escritor.]</p><p>conner, Marc C. (Org). The Poetry of James Joyce Reconsidered.</p><p>Gainesville: University Press of Florida, 2012. [Obra mais recente</p><p>de revisão do valor da poesia de Joyce. Nove estudiosos</p><p>reavaliam a produção do Joyce poeta e a importância de seus</p><p>poemas no conjunto de sua obra.]</p><p>ellmann, Richard et al. James Joyce. Trad. de Lya Luft. Rio de</p><p>Janeiro: Globo, 1989. [A mais importante biografia de Joyce.</p><p>Embora nos últimos tempos o trabalho de Ellmann tenha sido</p><p>reavaliado, essa biografia ainda é absolutamente indispensável</p><p>aos estudiosos da vida e da obra de Joyce.]</p><p>——. Ao longo do riocorrente. Trad. de Denise Bottmann. São</p><p>Paulo: Companhia das Letras, 1991. [Nesta seleção organizada</p><p>postumamente, encontra-se um ensaio dedicado a Exílios,</p><p>“Tornando-se exilados”. No que soa como resposta a Hugh</p><p>Kenner (cf. obra nestas Sugestões de leitura), Ellmann afirma que</p><p>a peça de Joyce é melhor do que parece, apesar de ter</p><p>fraquezas.]</p><p>hauptmann, Gerhart. Before Sunrise. Org. de Jill Perkins. Trad. de</p><p>James Joyce. San Marino (ca): The Huntington Library, 1978. [O</p><p>manuscrito da tradução da peça de Hauptmann feita por Joyce</p><p>fazia parte da coleção privada de John Hinsdale Thompson, pai</p><p>de Perkins. Em 1974, a pesquisadora doou toda a coleção do pai</p><p>para a Henry E. Huntington Library and Art Gallery em nome da</p><p>“segurança, preservação e disponibilidade para os</p><p>pesquisadores”.]</p><p>joyce, James. Música de câmara. Trad. de Alípio Correia de Franca</p><p>Neto. São Paulo: Iluminuras, 1998. [Edição bilíngue, ilustrada,</p><p>acompanhada de notas e ensaio do tradutor.]</p><p>——. Po’mas, pechincha. Trad. de Marcelo Tápia. São Paulo:</p><p>Expressão; Timbre, 1986. [Provavelmente a primeira seleção de</p><p>poemas de Joyce traduzida no Brasil, este pequeno livro traz os</p><p>seguintes poemas: “Uma flor dada a minha filha”, “Só”,</p><p>“Bahnhofstrasse” e “Ecce puer”. Faz parte da Coleção Bagatela,</p><p>cujo primeiro volume, publicado em edição hors commerce, saiu</p><p>em uma caixa contendo também Catulo: Poemas; Poesia Marcial;</p><p>e Céu de outro lugar: Haikais.]</p><p>——. Pomas, um tostão cada e outros poemas. Trad. de Alípio</p><p>Correia de Franca Neto. São Paulo: Iluminuras, 2001. [Edição</p><p>bilíngue, ilustrada, acompanhada de notas e ensaio do tradutor.]</p><p>——. Exiles. Org. de Keri Walsh. Oxford: Oxford University Press,</p><p>2021. [Edição mais recente da peça de Joyce em inglês. A</p><p>introdução de Keri Walsh é instrutiva e abrangente, devendo ser</p><p>lida por todos os interessados em estudar a peça. A edição traz</p><p>notas, bibliografia selecionada, apêndices e uma história da</p><p>composição e publicação da obra. Lamentavelmente, não traz as</p><p>notas de Joyce nem os fragmentos de diálogos que se encontram</p><p>na presente tradução.]</p><p>——. Exilados. Trad. de Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo:</p><p>Iluminuras, 2003. [Primeira tradução completa de Exiles no Brasil.</p><p>Edição bilíngue, ilustrada, acompanhada de notas e ensaio do</p><p>tradutor e do poema de ocasião “Epílogo aos Espectros de Ibsen”,</p><p>de Joyce.]</p><p>——. Stephen herói. Trad. de José Roberto O’Shea. São Paulo:</p><p>Hedra, 2012. [Versão fragmentária de Um retrato do artista</p><p>quando jovem (1916) publicada postumamente. Essa tentativa de</p><p>romance, profundamente autobiográfica, revela ideias importantes</p><p>do jovem Joyce sobre a poesia e o drama. A tradução de O’Shea</p><p>é a única publicada no Brasil.]</p><p>joyce, James. Œuvres. 2v. Vários tradutores. Org. de Jacques</p><p>Aubert. Lonrai: Gallimard, 2006. [As notas de Aubert para a</p><p>edição francesa dos poemas e da peça de Joyce (v. 1) estão entre</p><p>as melhores. Elas em alguma medida chegaram a orientar o</p><p>trabalho de Richard Ellmann et al. (1991) e a organização de</p><p>Poems and Exiles feita por J. C. C. Mays (1992).]</p><p>——. Poems and Shorter Writings. Org. de Richard Ellmann, A.</p><p>Walton Litz e John Whittier-Ferguson. Londres: Faber and Faber,</p><p>1991. [Esta edição cobre também os poemas de ocasião e os</p><p>fragmentos da juventude publicados postumamente. Tem</p><p>excelentes textos de introdução e apresentação das obras, mas</p><p>não é tão rica na anotação. Os poemas aparecem junto com os</p><p>“escritos curtos”, uma decisão editorial criticada por J. C. C.</p><p>Mays.]</p><p>——. Poems and Exiles. Org. de J. C. C. Mays. Londres: Penguin,</p><p>1992. [Como o neto do escritor, Stephen James Joyce, não</p><p>concordasse em autorizar a publicação de poemas que àquela</p><p>altura ainda se encontravam protegidos por direitos autorais, o</p><p>trabalho de Mays para a Penguin ficou fortemente prejudicado no</p><p>que diz respeito aos poemas de ocasião e aos fragmentos da</p><p>juventude. No entanto, esta edição tem aparato crítico relevante e</p><p>não deve deixar de ser lida em razão desse desfalque. Nela, os</p><p>poemas estão acompanhados de Exílios, uma decisão crítica</p><p>justificada por Mays. Um alerta: o poema em latim que Mays</p><p>acreditava ser de Joyce logo provou ter outra autoria.]</p><p>kenner, Hugh. Joyce’s Voices. Londres: Dalkey Archive Press, 2007.</p><p>[No conhecido ensaio “O princípio do tio Charles”, Kenner, um dos</p><p>maiores críticos da obra de Joyce, reprova Exílios por teimar em</p><p>não se assumir como farsa. O ensaísta, porém, demonstra que a</p><p>escrita da peça foi um exercício de escrita importante durante a</p><p>composição de Ulysses.]</p><p>slocum, John J.; cahoon, Herbert. A Bibliography of James Joyce:</p><p>1882-1941. Londres: Rupert Hart-Davis, 1957. [Originalmente</p><p>publicado em 1953, este trabalho, realizado ao longo de dez anos,</p><p>consiste em um levantamento das obras de Joyce até 1950.</p><p>Descreve, por exemplo, os conteúdos e as características físicas</p><p>dos livros (cor, tipo de papel, paginação etc.). Embora tenha</p><p>lacunas, como os autores mesmos reconhecem, o livro é até hoje</p><p>uma fonte de consulta imprescindível.]</p><p>tindall, William York. A Reader’s Guide to James Joyce. Londres:</p><p>Thames and Hudson, 1971. [Publicado pela primeira vez em</p><p>1959, este livro é um guia da obra joyciana que aborda de forma</p><p>introdutória, mas nem de longe superficial, os contos, os</p><p>romances e a peça de Joyce, deixando de fora os poemas.]</p><p>vizioli, Paulo. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: epu,</p><p>1991. [Introdução à obra de Joyce que vai dos poemas a</p><p>Finnegans Wake, passando pelo drama. Livro que pode ser muito</p><p>útil aos leitores de língua portuguesa interessados em uma visão</p><p>panorâmica e introdutória da obra do escritor irlandês.]</p><p>https://t.me/SBDLivros</p><p>Copyright © 2022 by PenguinCompanhia das Letras</p><p>Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou</p><p>em vigor no Brasil em 2009.</p><p>Penguin and the associated logo and trade dress are registered and/or unregistered</p><p>trademarks of Penguin Books Limited and/or Penguin Group (usa) Inc. Used with</p><p>permission.</p><p>Published by Companhia das Letras in association with Penguin Group (usa) Inc.</p><p>título original</p><p>Poems and Exiles</p><p>preparação</p><p>Ciça Caropreso</p><p>revisão</p><p>Marise Leal</p><p>Huendel Viana</p><p>versão digital</p><p>Rafael Alt</p><p>isbn 978-65-5782-484-9</p><p>Todos os direitos desta edição reservados à</p><p>editora schwarcz s.a.</p><p>Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32</p><p>https://t.me/SBDLivros</p><p>04532-002 — São Paulo — sp</p><p>Telefone: (11) 3707-3500</p><p>www.penguincompanhia.com.br</p><p>www.blogdacompanhia.com.br</p><p>www.companhiadasletras.com.br</p><p>Ulysses</p><p>Joyce, James 9788580862294</p><p>1112 páginas Compre agora e leia</p><p>Um homem sai de casa pela manhã, cumpre com as tarefas do</p><p>dia e, pela noite, retorna ao lar. Foi em torno desse esqueleto</p><p>enganosamente</p><p>simples, quase banal, que James Joyce</p><p>elaborou o que veio a ser o grande romance do século XX.</p><p>Inspirado na Odisseia de Homero, Ulysses é ambientado em Dublin,</p><p>e narra as aventuras de Leopold Bloom e seu amigo Stephen</p><p>Dedalus ao longo do dia 16 de junho de 1904. Tal como o Ulisses</p><p>homérico, Bloom precisa superar numerosos obstáculos e tentações</p><p>até retornar ao apartamento na rua Eccles, onde sua mulher, Molly,</p><p>o espera. Para criar esse personagem rico e vibrante, Joyce</p><p>misturou numerosos estilos e referências culturais, num</p><p>caleidoscópio de vozes que tem desafiado gerações de leitores e</p><p>estudiosos ao redor do mundo.</p><p>O culto em torno de Ulysses teve início antes mesmo de sua</p><p>publicação em livro, quando trechos do romance começaram a</p><p>aparecer num jornal literário dos EUA. Por conta dessas passagens,</p><p>Ulysses foi banido nos Estados Unidos, numa acusação de</p><p>obscenidade, dando início a uma longa pendenga legal, que seria</p><p>resolvida apenas onze anos depois, com a liberação do romance em</p><p>solo americano.</p><p>Mas, para além das disputas e polêmicas, Ulysses segue como um</p><p>divisor de águas por conta do êxito do autor no principal ponto do</p><p>romance: esticar e moldar a língua inglesa ao limite, a fim de retirar</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788580862294/838a304a5282f4b08f66356cac9bec5b</p><p>disso um retrato fiel, divertido e comovente do que se convencionou</p><p>chamar de o "homem moderno".</p><p>Em seu clássico estudo sobre a obra de James Joyce, Homem</p><p>comum enfim, o crítico e escritor britânico Anthony Burgess afirma</p><p>que, "se alguma vez houve um grande escritor popular, Joyce foi</p><p>este escritor". Guiado por esse espírito eminentemente democrático</p><p>da escrita joyceana, Caetano Galindo realizou esta nova tradução</p><p>de Ulysses, a fim de captar "a imensa gama de cores, registros,</p><p>estilos, recursos e efeitos" de sua prosa revolucionária.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788580862294/838a304a5282f4b08f66356cac9bec5b</p><p>A importância de ser prudente e outras</p><p>peças</p><p>Wilde, Oscar 9788580864151</p><p>424 páginas Compre agora e leia</p><p>Muito da fama de Oscar Wilde se deve ao romance O retrato de</p><p>Dorian Gray, mas foi como dramaturgo que ele alcançou o maior</p><p>sucesso em vida, com as comédias de costumes Uma mulher sem</p><p>importância, Um marido ideal e A importância de ser prudente,</p><p>reunidas neste volume.</p><p>Nas peças que em larga medida satirizam a alta sociedade vitoriana</p><p>que jamais o aceitou de bom grado, Wilde aponta de maneira irônica</p><p>para si mesmo. Há algo do autor nas observações cínicas de lorde</p><p>Illingworth em Uma mulher sem importância, assim como no estilo</p><p>de vida despreocupado de lorde Goring, o bon vivant que é a fonte</p><p>de sensatez de Um marido ideal, e também no inconsequente dândi</p><p>Algernon de A importância de ser prudente.</p><p>Com introdução e notas de Richard Allen Cave, diretor e estudioso</p><p>do teatro britânico, a edição da Penguin-Companhia situa o leitor</p><p>sobre o contexto em que as peças foram encenadas e as inovações</p><p>que Wilde, um intelectual de grande apuro técnico, trouxe para a</p><p>dramaturgia moderna.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788580864151/4834468932c1840b43f46ef68241e4f8</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788580864151/4834468932c1840b43f46ef68241e4f8</p><p>A tempestade</p><p>Shakespeare, William</p><p>9786557824573</p><p>280 páginas</p><p>Compre agora e leia</p><p>Repleta de mistérios, esta peça tem como cenário uma ilha</p><p>habitada por um poderoso feiticeiro em busca de vingança.</p><p>Embora seja um dos textos mais breves do autor, sua trama é</p><p>cheia de reviravoltas que abordam os temas universais da</p><p>liberdade e do perdão.</p><p>Considerado o último texto escrito pelo lendário William</p><p>Shakespeare, A tempestade segue provocando interpretações</p><p>radicalmente diversas, que vão da releitura fantástica de Neil</p><p>Gaiman, passando pela psicanálise e chegando ao feminismo pós-</p><p>colonial de Silvia Frederici.</p><p>Em uma ilha desabitada que pertencia a uma velha bruxa, Próspero,</p><p>o antigo duque de Milão, provoca uma tempestade sobrenatural que</p><p>naufraga o navio onde se encontra seu irmão, que lhe usurpou o</p><p>título real. É o primeiro passo de um projeto de vingança que sofre</p><p>diversos imprevistos — em parte graças à figura misteriosa de</p><p>Calibã, um dos personagens mais instigantes do autor. Escravo</p><p>deformado, filho da bruxa que governara a ilha, seu ódio pelo duque</p><p>é interpretado pelos críticos contemporâneos à luz da revolta dos</p><p>povos colonizados.</p><p>A tempestade evoca tanto discussões extremamente atuais sobre a</p><p>relação entre os seres humanos e a natureza, que segue misteriosa</p><p>para os olhos científicos e desencantados do homem ocidental,</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9786557824573/2363912975c65566199aa7bd6a0a54a2</p><p>quanto questões de disputas políticas, desforra e até uma história</p><p>de amor temperada pela magia, mantendo um movimento constante</p><p>no enredo e divertindo os leitores de todas as épocas.</p><p>A tradução do premiado José Francisco Botelho valoriza a métrica,</p><p>dando características oratórias diferentes a cada personagem e</p><p>reconstruindo o marejar das ondas que circundam a ilha onde se</p><p>passa a ação. Ao mesmo tempo, sua fluidez e clareza oferecem um</p><p>Shakespeare acessível para leitores de todas as idades e para</p><p>aqueles que nunca leram uma obra do autor.</p><p>"A magia em A tempestade é real (…) O livro traz muitas questões</p><p>sem resposta." — Margaret Atwood</p><p>"Uma obra que apela à imaginação."— Samuel Coleridge</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9786557824573/2363912975c65566199aa7bd6a0a54a2</p><p>Sobre a brevidade da vida / Sobre a firmeza</p><p>do sábio</p><p>Sêneca 9788543809724</p><p>80 páginas Compre agora e leia</p><p>Na coleção Grandes Ideias, dois textos clássicos e</p><p>incontornáveis de Sêneca sobre a arte de viver.</p><p>Os escritos do filósofo estoico Sêneca pertencem à categoria de</p><p>obras que mudaram a humanidade e que, universais, resistem à</p><p>passagem do tempo. Por meio de insights poderosos, eles</p><p>transformam a maneira como nos vemos e já serviram de guia para</p><p>inúmeras gerações por sua eloquência, lucidez e sabedoria.</p><p>Sobre a brevidade da vida e Sobre a firmeza do sábio foram</p><p>concebidos em forma de cartas e apresentam reflexões essenciais</p><p>quanto à arte de viver, à passagem do tempo e à importância da</p><p>razão e da moralidade.</p><p>Traduzida do latim por José Eduardo S. Lohner, esta edição conta</p><p>ainda com notas esclarecedoras do tradutor.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788543809724/c07d330f752f5fa5a66ab08adcda9b90</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788543809724/c07d330f752f5fa5a66ab08adcda9b90</p><p>Triste fim de Policarpo Quaresma</p><p>Barreto, Lima 9788563397799</p><p>368 páginas Compre agora e leia</p><p>No fim do século XIX, um major nacionalista, defensor da língua</p><p>tupi e seguidor de manuais de agricultura, engaja-se em três</p><p>projetos para defender a sua pátria. Introdução e notas de Lilia</p><p>Moritz Schwarcz. Prefácio de Oliveira Lima.</p><p>Com uma literatura engajada e realista, Lima Barreto (1881-1922)</p><p>compôs um romance cuja história oscila do humor ao drama.</p><p>Ambientado no final do século XIX, o livro conta a história do major</p><p>Policarpo Quaresma, nacionalista extremado, cuja visão sublime do</p><p>Brasil é motivo de desdém e ironia. Interessado em livros de</p><p>viagem, defensor da língua tupi e seguidor de manuais de</p><p>agricultura, Policarpo é, sobretudo, um "patriota", e quer defender</p><p>sua nação a todo custo. O patriotismo aferrado leva o protagonista a</p><p>se envolver em projetos, que constituem as três partes do livro.</p><p>Lançado pela primeira vez como folhetim no Jornal do Commercio,</p><p>Triste fim de Policarpo Quaresma</p><p>completa, em 2011, cem anos de sua primeira publicação. Esta</p><p>nova edição traz uma introdução da historiadora Lilia Moritz</p><p>Schwarcz, que, recorrendo ao original manuscrito e às resenhas da</p><p>edição do autor publicada em 1915, faz uma análise contundente do</p><p>romance e de seus personagens, desvendando o contexto social e</p><p>político em que foi escrito por Lima Barreto.</p><p>Complementando a fortuna crítica do livro, um texto de Oliveira</p><p>Lima, publicado em 1916 no Jornal do Commercio, e também cerca</p><p>de trezentas notas elaboradas por Lilia Moritz Schwarcz, Lúcia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788563397799/c292a6bfbcb1a42aa787bed43498afce</p><p>Garcia e Pedro Galdino que recuperam citações, textos, autores e</p><p>personalidades históricas presentes no romance.</p><p>Compre agora e leia</p><p>http://www.mynextread.de/redirect/Amazon+%28BR%29/3036000/9786557824849/9788563397799/c292a6bfbcb1a42aa787bed43498afce</p><p>Folha de rosto</p><p>Sumário</p><p>Sobre o autor</p><p>Nota do tradutor</p><p>EXÍLIOS (1918)</p><p>Primeiro ato</p><p>Segundo ato</p><p>Terceiro ato</p><p>Notas preparatórias de James Joyce</p><p>Fragmentos de diálogos</p><p>Notas de Exílios</p><p>POEMAS</p><p>Récita privada (1907)</p><p>Trocados porversos (1927)</p><p>Ecce puer (1932)</p><p>Notas desta edição</p><p>Cronologia</p><p>Sugestões de leitura</p><p>Créditos: SBD</p><p>de seus trinta e poucos anos. Rosto barbeado, feições instáveis.</p><p>Seu cabelo e seus olhos são escuros e sua pele, pálida. Seu</p><p>caminhar e sua fala são lentos. Veste um terno matinal azul-</p><p>escuro e tem na mão um grande buquê de rosas vermelhas,</p><p>embrulhado em papel de seda.]</p><p>robert</p><p>(vindo na direção dela com uma mão estendida, que ela pega)</p><p>Prima querida! A Brigid me disse que você estava aqui. Eu nem</p><p>fazia ideia. Mandou um telegrama para a mãe?</p><p>beatrice</p><p>(olhando para as rosas) Não.</p><p>robert</p><p>(acompanhando seu olhar) Você está admirando as minhas rosas.</p><p>Eu trouxe para a dona da casa. (criticamente) Infelizmente não</p><p>estão muito boas.</p><p>brigid</p><p>Mas elas estão lindas, senhor. A patroa vai ficar encantada.</p><p>robert</p><p>(larga as rosas descuidadamente numa cadeira, onde ficam</p><p>invisíveis) Não tem ninguém em casa?</p><p>brigid</p><p>Não, senhor. Senta, senhor. Eles já devem estar chegando. O</p><p>patrão estava aqui.</p><p>[Ela olha em volta e, com meia reverência, sai pela direita.]</p><p>robert</p><p>(depois de um breve silêncio) Como você está, Beatty? E como está</p><p>todo mundo lá em Youghal? A mesma chatice de sempre?</p><p>beatrice</p><p>Estava todo mundo bem quando eu vim.</p><p>robert</p><p>(educadamente) Ah, mas que pena eu não saber que você estava</p><p>vindo. Podia ter ido te esperar na estação. Por que você fez isso?</p><p>Você é um pouco estranha, Beatty, não é verdade?</p><p>beatrice</p><p>(no mesmo tom de voz) Obrigada, Robert. Eu estou mais do que</p><p>acostumada a me deslocar sozinha.</p><p>robert</p><p>Sim, mas eu estava falando… Ah, enfim, foi uma chegada bem ao</p><p>seu estilo.</p><p>[Ouve-se um ruído à janela e a voz de um menino que grita: “Sr.</p><p>Hand!”. robert se vira.]</p><p>robert</p><p>Santo Deus, o Archie também está chegando bem ao seu estilo!</p><p>[Pela janela da esquerda, archie pula afoitamente para dentro do</p><p>cômodo, depois se põe de pé, corado e sem fôlego.</p><p>archie é um menino de oito anos, veste uma calça curta branca,</p><p>um suéter e um boné. Usa óculos, tem modos animados e fala</p><p>com um levíssimo sotaque estrangeiro.]</p><p>beatrice</p><p>(indo até ele) Jesus amado, Archie! O que foi?</p><p>archie</p><p>(pondo-se de pé, sem fôlego) Nossa! Eu corri a avenida inteira.</p><p>robert</p><p>(sorri e lhe estende a mão) Boa tarde, Archie. E correu por quê?</p><p>archie</p><p>(aperta a mão dele) Boa tarde. A gente viu o senhor em cima do</p><p>bonde, e eu gritei sr. Hand! Mas o senhor não me viu. Mas a gente</p><p>viu o senhor, a mamãe e eu. Ela já está chegando. Eu corri.</p><p>beatrice</p><p>(estendendo a mão para ele) E a coitadinha aqui!</p><p>archie</p><p>(aperta a mão dela um pouco tímido) Boa tarde, srta. Justice.</p><p>beatrice</p><p>Você ficou triste de eu não ter vindo para a aula de sexta passada?</p><p>archie</p><p>(olha rapidamente para ela, sorri) Não.</p><p>beatrice</p><p>Contente?</p><p>archie</p><p>(de repente) Mas hoje está tarde demais.</p><p>beatrice</p><p>Uma aula bem curtinha?</p><p>archie</p><p>(satisfeito) Isso.</p><p>beatrice</p><p>Mas agora você tem que estudar, Archie.</p><p>robert</p><p>Vocês estavam na praia?</p><p>archie</p><p>Isso.</p><p>robert</p><p>E você já está nadando bem?</p><p>archie</p><p>(encosta-se na escrivaninha) Não. A mamãe não me deixa entrar na</p><p>parte funda. O senhor nada bem, sr. Hand?</p><p>robert</p><p>Maravilhosamente bem. Igual a uma pedra.</p><p>archie</p><p>(ri) Igual a uma pedra! (apontando para baixo) Desse jeito?</p><p>robert</p><p>(apontando) Sim, para baixo; direto. Como é que se diz isso lá na</p><p>Itália?</p><p>archie</p><p>Isso? Giù. (apontando para baixo e para cima) Isso é giù e isso é sù.</p><p>O senhor quer falar com o meu papai?</p><p>robert</p><p>Sim. Eu vim falar com ele.</p><p>archie</p><p>(indo até o escritório) Eu vou dizer pra ele. Ele está aqui,</p><p>escrevendo.</p><p>beatrice</p><p>(calma, olhando para robert) Não; ele saiu. Foi pôr umas cartas no</p><p>correio.</p><p>robert</p><p>(jovial) Ah, não faz mal. Se ele só foi até o correio, eu espero.</p><p>archie</p><p>Mas a mamãe está chegando. (olha para a janela) Olha ela!</p><p>[archie sai correndo pela porta da esquerda. beatrice vai</p><p>lentamente até a escrivaninha. robert fica parado. Um breve</p><p>silêncio. archie e bertha entram pela porta da esquerda.</p><p>bertha é uma jovem de porte gracioso. Tem olhos cinza-</p><p>escuros, de expressão paciente e traços delicados. Sua atitude é</p><p>cordial e segura. Usa um vestido cor de lavanda e traz as luvas</p><p>cor de creme atadas ao cabo da sombrinha.]</p><p>bertha</p><p>(trocando um aperto de mãos com ela) Boa tarde, srta. Justice. Nós</p><p>achávamos que a senhorita ainda estava lá em Youghal.</p><p>beatrice</p><p>(trocando um aperto de mãos com ela) Boa tarde, sra. Rowan.</p><p>bertha</p><p>(faz uma reverência) Boa tarde, sr. Hand.</p><p>robert</p><p>(faz uma reverência) Boa tarde, signora! Veja que coisa, eu também</p><p>só soube que ela tinha voltado quando dei com ela aqui.</p><p>bertha</p><p>(para os dois) Vocês não vieram juntos?</p><p>beatrice</p><p>Não. Eu cheguei antes. O sr. Rowan estava de saída. Ele disse que</p><p>voltava logo.</p><p>bertha</p><p>Sinto muito. Se a senhorita tivesse escrito ou mandado a menina</p><p>com um recado hoje cedo…</p><p>beatrice</p><p>(ri nervosa) Eu cheguei só faz uma hora e meia. Pensei em mandar</p><p>um telegrama, mas me pareceu trágico demais.</p><p>bertha</p><p>Ah? Só agora é que a senhorita chegou?</p><p>robert</p><p>(abrindo os braços, brincalhão) Estou me aposentando das vidas</p><p>pública e privada. Primo dela e jornalista, não sei nada dos</p><p>movimentos dessa moça.</p><p>beatrice</p><p>(não diretamente para ele) Meus movimentos não são tão</p><p>interessantes assim.</p><p>robert</p><p>(no mesmo tom de voz) Os movimentos de uma dama são sempre</p><p>interessantes.</p><p>bertha</p><p>Mas sente, por favor. Você deve estar muito cansada.</p><p>beatrice</p><p>(rápido) Não, não mesmo. Eu vim só por causa da aula do Archie.</p><p>bertha</p><p>Mas nem pensar numa coisa dessa, srta. Justice, depois de uma</p><p>viagem tão longa.</p><p>archie</p><p>(de repente, para beatrice) E além disso a senhorita nem trouxe as</p><p>partituras.</p><p>beatrice</p><p>(um pouco desorientada) Isso eu esqueci mesmo. Mas nós temos a</p><p>peça antiga.</p><p>robert</p><p>(beliscando a orelha de archie) Seu safado. Você quer é escapar da</p><p>aula.</p><p>bertha</p><p>Ah, deixem a aula para lá. A senhorita tem que sentar e tomar uma</p><p>xícara de chá agora. (indo até a porta da direita) Vou avisar a Brigid.</p><p>archie</p><p>Deixa que eu vou, mamãe. (esboça o gesto de ir até lá)</p><p>beatrice</p><p>Não, por favor, sra. Rowan. Archie! Eu realmente prefiro…</p><p>robert</p><p>(baixo) Sugiro um meio-termo. Que seja meia aula.</p><p>bertha</p><p>Mas ela deve estar exausta.</p><p>beatrice</p><p>(rápido) Nem um pouco. No trem eu já vim pensando na aula.</p><p>robert</p><p>(para bertha) Está vendo o que é ter consciência, sra. Rowan?</p><p>archie</p><p>Na minha aula, srta. Justice?</p><p>beatrice</p><p>(candidamente) Faz dez dias que eu não ouço um piano.</p><p>bertha</p><p>Ah, pois muito bem. Não seja por isso…</p><p>robert</p><p>(nervoso, alegre) Então que venha o piano. Eu sei que som está na</p><p>cabeça da Beatty no momento. (para beatrice) Conto?</p><p>beatrice</p><p>Se você souber.</p><p>robert</p><p>O zumbido do harmônio na sala da casa do pai dela. (para beatrice)</p><p>Admita.</p><p>beatrice</p><p>(sorrindo) Sim. Eu ainda estou ouvindo.</p><p>robert</p><p>(sombrio) Eu também. A voz asmática do protestantismo.</p><p>bertha</p><p>Divertiu-se por lá, srta. Justice?</p><p>robert</p><p>(intervém) Ela não se divertiu, sra. Rowan. Ela vai para lá como para</p><p>um retiro, quando a veia protestante fala mais alto — escuridão,</p><p>seriedade, retidão moral.</p><p>beatrice</p><p>Vou para ver o meu pai.</p><p>robert</p><p>(continuando) Mas ela volta para cá, para a minha mãe, sabe? A</p><p>influência do piano vem do nosso lado da família.</p><p>bertha</p><p>(hesitando) Bom, srta. Justice, se quiser tocar alguma coisa… Mas</p><p>por favor não se canse com o Archie.</p><p>robert</p><p>(suave) Anda, Beatty. É o que você quer.</p><p>beatrice</p><p>Se o Archie vier comigo?</p><p>archie</p><p>(dando de ombros) Para escutar.</p><p>beatrice</p><p>(pega a mão dele) E para uma aulinha também. Bem curta.</p><p>bertha</p><p>Bom, mas depois a senhorita não escapa do chá.</p><p>beatrice</p><p>(para archie) Venha.</p><p>[beatrice e archie saem juntos pela porta da esquerda. bertha vai</p><p>até a escrivaninha, tira o chapéu e o coloca com a sombrinha em</p><p>cima da mesa. Depois, tirando uma chave de dentro de um</p><p>pequeno vaso de flores, abre uma gaveta da escrivaninha, tira um</p><p>pedaço de papel e fecha a gaveta. robert fica olhando.]</p><p>bertha</p><p>(indo até ele com o papel na mão) Você pôs isto aqui na minha mão</p><p>ontem à noite. O que isso quer dizer?</p><p>robert</p><p>Você não sabe?</p><p>bertha</p><p>(lê) Há uma palavra que jamais ousei te dizer. Qual</p><p>é a palavra?</p><p>robert</p><p>Que eu tenho uma profunda estima por você.</p><p>[Breve pausa. Ouve-se vagamente o piano no andar de cima.]</p><p>robert</p><p>(pega o buquê de rosas na cadeira) Comprei para você. Você</p><p>aceita, vindo de mim?</p><p>bertha</p><p>(aceitando as flores) Obrigada. (larga as flores na mesa e</p><p>novamente desdobra o papel) Por que você não ousou dizer tudo</p><p>isso ontem à noite?</p><p>robert</p><p>Eu não consegui falar com você nem seguir você. Era gente demais</p><p>no jardim. Queria que pensasse no assunto, então pus o bilhete na</p><p>sua mão quando vocês estavam se despedindo.</p><p>bertha</p><p>Agora você ousou dizer.</p><p>robert</p><p>(passa a mão pelos olhos devagar) Você passou. A avenida estava</p><p>coberta pela luz do crepúsculo. Dava para eu ver o conjunto verde</p><p>das árvores. E você passou por elas. Você era como a lua.</p><p>bertha</p><p>(ri) Por que como a lua?</p><p>robert</p><p>Com aquele vestido, com esse corpo delgado, caminhando com</p><p>passinhos regulares. Fiquei vendo a lua passar no crepúsculo até</p><p>você passar e sair do meu campo de visão.</p><p>bertha</p><p>Você pensou em mim ontem à noite?</p><p>robert</p><p>(chega mais perto) Eu sempre penso em você — como algo belo e</p><p>distante: a lua ou alguma música profunda.</p><p>bertha</p><p>(sorrindo) E qual delas eu era ontem à noite?</p><p>robert</p><p>Fiquei acordado metade da noite. Podia ouvir a sua voz. Podia ver o</p><p>seu rosto no escuro. Os seus olhos… Eu quero falar com você.</p><p>Você vai me ouvir? Posso falar?</p><p>bertha</p><p>(sentando) Pode.</p><p>robert</p><p>(sentando ao lado dela) Você está irritada comigo?</p><p>bertha</p><p>Não.</p><p>robert</p><p>Achei que estivesse. Você largou tão rápido as minhas flores.</p><p>bertha</p><p>(pega as flores na mesa e as segura junto ao rosto) É isso que você</p><p>quer que eu faça com elas?</p><p>robert</p><p>(olhando para ela) O seu rosto também é uma flor… só que mais</p><p>bonita. Uma flor selvagem que se abre num arbusto. (levando a</p><p>cadeira para mais perto dela) Por que você está sorrindo? Das</p><p>minhas palavras?</p><p>bertha</p><p>(deitando as flores no colo) Estou pensando se é isso que você</p><p>diz… às outras.</p><p>robert</p><p>(surpreso) Que outras?</p><p>bertha</p><p>As outras mulheres. Dizem que você tem tantas admiradoras.</p><p>robert</p><p>(de repente, sem se controlar) E é por isso que você também…?</p><p>bertha</p><p>Mas tem, não é verdade?</p><p>robert</p><p>Amigas, sim.</p><p>bertha</p><p>Você fala com elas desse jeito?</p><p>robert</p><p>(num tom ofendido) Como você pode me perguntar uma coisa</p><p>dessa? Que tipo de pessoa você acha que eu sou? Ou por que você</p><p>me dá ouvidos? Não gostou de eu falar com você dessa maneira?</p><p>bertha</p><p>O que você disse foi muito gentil. (olha para ele por um momento)</p><p>Obrigada por dizer aquilo… e pensar aquilo.</p><p>robert</p><p>(inclinando-se para ela) Bertha!</p><p>bertha</p><p>Sim?</p><p>robert</p><p>Eu tenho direito de te chamar pelo nome. Pelos velhos tempos…</p><p>nove anos atrás. Nós éramos Bertha e Robert naqueles dias. Não</p><p>podemos ser assim também agora?</p><p>bertha</p><p>(sem vacilar) Ah, sim. Por que não?</p><p>robert</p><p>Bertha, você sabia. Desde a noite em que vocês atracaram no porto</p><p>de Kingstown.12 Tudo voltou para mim. E você sabia. Você</p><p>enxergou.</p><p>bertha</p><p>Não. Não naquela noite.</p><p>robert</p><p>Quando?</p><p>bertha</p><p>Na noite em que chegamos eu estava muito cansada, muito suja.</p><p>(balançando a cabeça) Naquela noite eu não enxerguei isso em</p><p>você.</p><p>robert</p><p>(sorrindo) Me diga o que você viu naquela noite — a sua</p><p>primeiríssima impressão.</p><p>bertha</p><p>(franzindo as sobrancelhas) Você estava parado, de costas para o</p><p>passadiço, conversando com duas mulheres.</p><p>robert</p><p>Duas senhoras de meia-idade nada atraentes, isso mesmo.</p><p>bertha</p><p>Eu te reconheci imediatamente. E vi que você tinha engordado.</p><p>robert</p><p>(segura a mão dela) E desse coitado desse Robert mais gordo —</p><p>você gosta assim tão pouco dele? Desconfia de tudo que ele diz?</p><p>bertha</p><p>Eu acho que os homens falam desse jeito com todas as mulheres</p><p>que admiram. Em que você quer que eu acredite?</p><p>robert</p><p>Todos os homens, Bertha?</p><p>bertha</p><p>(com súbita tristeza) Acho que sim.</p><p>robert</p><p>Eu também?</p><p>bertha</p><p>Sim, Robert. Acho que você também.</p><p>robert</p><p>Todos então, sem exceção? Ou com uma única exceção? (em tom</p><p>mais baixo) Ou ele também é — Richard também — como todos</p><p>nós pelo menos nisso? Ou é diferente?</p><p>bertha</p><p>(olha nos olhos dele) Diferente.</p><p>robert</p><p>Você tem mesmo certeza, Bertha?</p><p>bertha</p><p>(um pouco confusa, tenta tirar a mão da dele) Eu já respondi.</p><p>robert</p><p>(afetuosamente) Bertha, posso beijar a sua mão? Permita. Posso?</p><p>bertha</p><p>Se você quiser.</p><p>[Ele leva a mão dela lentamente aos lábios. Ela se levanta de</p><p>repente e fica ouvindo.]</p><p>bertha</p><p>Ouviu o portão do jardim?</p><p>robert</p><p>(levantando-se também) Não.</p><p>[Breve pausa. Ouve-se vagamente o piano no andar de cima.]</p><p>robert</p><p>(suplicando) Não vá embora. Você não pode mais ir embora. A sua</p><p>vida está aqui. Foi também por isso que eu vim hoje — para falar</p><p>com ele e insistir para ele aceitar esse emprego. Ele precisa aceitar.</p><p>E você precisa convencê-lo a aceitar. Você tem muita influência</p><p>sobre ele.</p><p>bertha</p><p>Você quer que ele fique aqui.</p><p>robert</p><p>Sim.</p><p>bertha</p><p>Por quê?</p><p>robert</p><p>Por você, porque você não é feliz tão longe daqui. Por ele também,</p><p>porque ele devia pensar no futuro.</p><p>bertha</p><p>(rindo) Lembra o que ele disse quando vocês conversaram ontem à</p><p>noite?</p><p>robert</p><p>Sobre…? (refletindo) Sim. Ele citou o pai-nosso para falar do pão</p><p>nosso de cada dia. Disse que cuidar do futuro é destruir a</p><p>esperança e o amor do mundo.</p><p>bertha</p><p>Você não acha que ele é estranho?</p><p>robert</p><p>No que se refere a isso, sim.</p><p>bertha</p><p>Um tanto… louco?</p><p>robert</p><p>(chega mais perto) Não. Ele não é louco. Talvez nós sejamos. Por</p><p>quê? Você acha…?</p><p>bertha</p><p>(ri) Eu te perguntei porque você é inteligente.</p><p>robert</p><p>Você não pode ir embora. Eu não vou permitir.</p><p>bertha</p><p>(olha em cheio para ele) Você?</p><p>robert</p><p>Esses olhos não podem ir embora. (segura as mãos dela) Posso</p><p>beijar seus olhos?</p><p>bertha</p><p>Beije.</p><p>[Ele beija os olhos dela e depois passa a mão no próprio cabelo.]</p><p>robert</p><p>Minha pequena Bertha!</p><p>bertha</p><p>(sorrindo) Mas eu não sou tão pequena. Por que você me chama de</p><p>pequena?</p><p>robert</p><p>Pequena Bertha! Um abraço? (passa um braço em torno dela) Olhe</p><p>de novo nos meus olhos.</p><p>bertha</p><p>(olhando nos olhos dele) Eu vejo pontinhos dourados. Você tem</p><p>tantos…</p><p>robert</p><p>(encantado) A sua voz! Me dê um beijo, um beijo da sua boca.</p><p>bertha</p><p>Roube.</p><p>robert</p><p>Tenho medo. (beija-a e passa a mão muitas vezes no cabelo dela)</p><p>Finalmente! Finalmente você está nos meus braços!</p><p>bertha</p><p>E você está satisfeito?</p><p>robert</p><p>Deixe eu sentir os seus lábios nos meus.</p><p>bertha</p><p>E aí você vai ficar satisfeito?</p><p>robert</p><p>(murmura) Os seus lábios, Bertha!</p><p>bertha</p><p>(fecha os olhos e lhe dá um beijo rápido) Pronto. (põe as mãos nos</p><p>ombros dele) Por que você não diz: obrigado?</p><p>robert</p><p>(suspira) Minha vida acabou — está acabada.</p><p>bertha</p><p>Ah, não fale desse jeito, Robert.</p><p>robert</p><p>Acabada, acabada. Quero pôr fim nela de uma vez.</p><p>bertha</p><p>(preocupada, mas não muito) Seu bobo!</p><p>robert</p><p>(com um abraço forte) Acabar com tudo — a morte. Cair de um</p><p>grande penhasco alto, lá embaixo, bem no fundo do mar.</p><p>bertha</p><p>Por favor, Robert…</p><p>robert</p><p>Ouvindo música e nos braços da mulher que amo — o mar, música</p><p>e morte.</p><p>bertha</p><p>(olha para ele por um momento) A mulher que você ama?</p><p>robert</p><p>(apressadamente) Eu quero falar com você, Bertha, sozinho, não</p><p>aqui. Você viria?</p><p>bertha</p><p>(com os olhos no chão) Eu também quero conversar com você.</p><p>robert</p><p>(com ternura) Sim, querida, eu sei. (dá mais um beijo nela) Vou</p><p>conversar com você, te dizer tudo. E te beijar, beijos longos, longos</p><p>— quando você vier a mim —, beijos muito longos e doces.</p><p>bertha</p><p>Onde?</p><p>robert</p><p>(em tom apaixonado) Nos olhos. Nos lábios. Em todo o seu corpo</p><p>divino.</p><p>bertha</p><p>(recusando o abraço dele, confusa) Eu queria saber aonde você</p><p>quer que eu vá.</p><p>robert</p><p>À minha casa. Não a da minha mãe aqui ao lado. Eu te dou o</p><p>endereço. Você vai?</p><p>bertha</p><p>Quando?</p><p>robert</p><p>Hoje à noite. Entre as oito e as nove. Vá. Vou te esperar esta noite.</p><p>E todas as noites. Você vai?</p><p>[Ele a beija apaixonadamente, segurando-lhe cabeça entre as</p><p>mãos. Depois de alguns instantes ela se liberta. Ele senta.]</p><p>bertha</p><p>(ouvindo) O portão abriu.</p><p>robert</p><p>(intensamente) Eu</p><p>vou te esperar.</p><p>[Ele pega um papelzinho na mesa. bertha se afasta lentamente</p><p>dele. richard entra pelo jardim.]</p><p>richard</p><p>(entrando, tira o chapéu) Boa tarde!</p><p>robert</p><p>(levanta-se, num gesto amistoso, mas nervoso) Boa tarde, Richard!</p><p>bertha</p><p>(à mesa, pegando as rosas) Veja que rosas lindas o sr. Hand me</p><p>trouxe.</p><p>robert</p><p>Infelizmente elas perderam o frescor.</p><p>richard</p><p>(de repente) Vocês me dão licença um minuto?</p><p>[Ele se vira e entra depressa em seu escritório. robert tira um lápis</p><p>do bolso e escreve umas poucas palavras no papelzinho; depois o</p><p>entrega rapidamente a bertha.]</p><p>robert</p><p>(apressado) O endereço. Pegue o bonde na Lansdowne Road e</p><p>peça para descer perto.</p><p>bertha</p><p>(pega o papel) Não prometo nada.</p><p>robert</p><p>Estarei te esperando.</p><p>[richard volta do escritório.]</p><p>bertha</p><p>(saindo) Preciso pôr essas rosas na água.</p><p>richard</p><p>(entregando-lhe o chapéu) Sim, faça isso. E, por favor, guarde o</p><p>meu chapéu.</p><p>bertha</p><p>(pega o chapéu) Então vou deixar vocês dois conversarem</p><p>tranquilos. (olhando em volta) Querem alguma coisa? Cigarros?</p><p>richard</p><p>Obrigado. Eles estão aqui.</p><p>bertha</p><p>Então vou me retirar.</p><p>[Ela sai pela esquerda com o chapéu de richard, deixa-o no</p><p>corredor e volta imediatamente; detém-se um instante diante da</p><p>escrivaninha, guarda o papel na gaveta, tranca, guarda a chave e,</p><p>pegando as rosas, vai para a direita. robert se adianta para lhe</p><p>abrir a porta. Ela faz uma reverência e sai.]</p><p>richard</p><p>(aponta para a cadeira perto da mesinha da direita) O seu lugar de</p><p>honra.</p><p>robert</p><p>(senta) Obrigado. (passando a mão na testa) Meu Deus, como está</p><p>quente hoje! Esse calor me dá uma dor aqui no olho. Essa luz forte.</p><p>richard</p><p>Acho que a sala está bem escura, com a persiana abaixada, mas se</p><p>quiser…</p><p>robert</p><p>(rápido) Não mesmo. Eu sei o que é isso — resultado do trabalho</p><p>noturno.</p><p>richard</p><p>(senta na poltrona) Não há como evitar isso?</p><p>robert</p><p>(suspira) Hmm, não. Eu tenho que fechar uma parte do jornal toda</p><p>noite. E ainda há os meus editoriais. Estamos à beira de momentos</p><p>difíceis. E não só aqui.</p><p>richard</p><p>(depois de uma pequena pausa) Você tem alguma notícia?</p><p>robert</p><p>(com uma voz diferente) Tenho. Eu quero falar sério com você. Hoje</p><p>pode ser um dia importante para você — ou melhor, uma noite</p><p>importante. Falei com o vice-reitor de manhã. Ele o tem em altíssima</p><p>conta, Richard. Disse que leu seu livro.</p><p>richard</p><p>Ele comprou ou pegou emprestado?</p><p>robert</p><p>Espero que tenha comprado.</p><p>richard</p><p>Vou fumar um cigarro. Já venderam trinta e sete exemplares em</p><p>Dublin.</p><p>[Tira um cigarro da caixa em cima da mesa e o acende.]</p><p>robert</p><p>(cheio de tato, desanimado) Bem, por ora não se fala mais nisso.</p><p>Você hoje está com a sua máscara de ferro.</p><p>richard</p><p>(fumando) Mas me conte o resto.</p><p>robert</p><p>(sério de novo) Richard, você é desconfiado demais. É um defeito</p><p>seu. Ele me garantiu que o tem na mais alta conta, como todo</p><p>mundo, aliás. Você é o homem certo para o posto, ele diz. A bem da</p><p>verdade, me disse que se o seu nome for aprovado ele vai dar tudo</p><p>nas negociações com o Senado e eu… vou fazer minha parte, claro,</p><p>na imprensa e em conversas pessoais. Considero que seja meu</p><p>dever público. A cátedra de literaturas românicas é sua por direito,</p><p>como acadêmico, como personalidade literária.</p><p>richard</p><p>E as condições?</p><p>robert</p><p>Condições? Você quer saber do futuro?</p><p>richard</p><p>Eu quero saber do passado.</p><p>robert</p><p>(tranquilo) Aquele episódio do seu passado está esquecido. Um ato</p><p>impulsivo. Somos todos impulsivos.</p><p>richard</p><p>(olha fixamente para ele) Na época você declarou que era um ato</p><p>ensandecido — nove anos atrás. Você me disse que eu estava</p><p>pendurando uma pedra no pescoço.</p><p>robert</p><p>Eu estava errado. (suavemente) Olha como a coisa está agora,</p><p>Richard. Todo mundo sabe que oito anos atrás você fugiu com uma</p><p>jovem… como eu posso dizer?… com uma jovem que não era</p><p>exatamente uma sua igual. (com delicadeza) Você me desculpe,</p><p>Richard, não se trata da minha opinião nem das minhas palavras.</p><p>Estou simplesmente reproduzindo o que disseram pessoas de cuja</p><p>opinião não compartilho.</p><p>richard</p><p>Está escrevendo um dos seus editoriais, na verdade.</p><p>robert</p><p>Que seja. Enfim, causou sensação na época. Um misterioso</p><p>desaparecimento. Meu nome também ficou envolvido, como</p><p>padrinho, digamos assim, na tal famosa ocasião. Claro que as</p><p>pessoas acham que eu participei daquilo tudo movido por uma</p><p>equivocada noção de amizade. Enfim, tudo isso é mais que sabido.</p><p>(com certa hesitação) Mas o que aconteceu depois ninguém sabe.</p><p>richard</p><p>Não?</p><p>robert</p><p>Claro que não, é assunto seu, Richard. Todavia você não é mais tão</p><p>jovem. Uma expressão bem típica dos meus artigos, não é verdade?</p><p>richard</p><p>Você quer ou não quer que eu renegue a minha vida pregressa?</p><p>robert</p><p>Estou pensando na sua vida futura — aqui. Compreendo o seu</p><p>orgulho e a sua noção de liberdade. Compreendo também o ponto</p><p>de vista deles. Todavia, há uma saída; é simplesmente esta: abra</p><p>mão de contradizer quaisquer boatos que possa ouvir a respeito do</p><p>que aconteceu… ou não aconteceu depois que você foi embora.</p><p>Deixe o resto por minha conta.</p><p>richard</p><p>Você vai lançar esses boatos?</p><p>robert</p><p>Vou. Se Deus quiser.</p><p>richard</p><p>(observando-o) Em nome das convenções sociais?</p><p>robert</p><p>Em nome de outra coisa também — da nossa amizade, da nossa</p><p>amizade de uma vida inteira.</p><p>richard</p><p>Obrigado.</p><p>robert</p><p>(ligeiramente ferido) E eu vou te contar toda a verdade.</p><p>richard</p><p>(sorri e faz uma reverência) Sim. Conte mesmo, por favor.</p><p>robert</p><p>Não só por você. Também por… pela sua atual companheira de</p><p>vida.</p><p>richard</p><p>Entendo.</p><p>[Ele esmaga delicadamente o cigarro no cinzeiro, depois se</p><p>inclina para a frente, esfregando lentamente as mãos.]</p><p>richard</p><p>Por que por ela?</p><p>robert</p><p>(também se inclina para a frente, em silêncio) Richard, você foi</p><p>totalmente justo com ela? Ela teve o direito de escolher, você pode</p><p>dizer. Mas teve mesmo? Ela era só uma menina. E aceitou tudo que</p><p>você propôs.</p><p>richard</p><p>(sorri) Essa é a sua maneira de dizer que ela propôs o que eu não</p><p>aceitaria.</p><p>robert</p><p>(concorda com a cabeça) Eu lembro. E ela foi embora com você.</p><p>Mas foi por escolha própria? Responda com franqueza.</p><p>richard</p><p>(vira-se com calma para ele) Eu joguei por ela, contra tudo que você</p><p>diga ou possa dizer; e ganhei.</p><p>robert</p><p>(novamente concordando com a cabeça) É, você ganhou.</p><p>richard</p><p>(levanta-se) Desculpe eu ter esquecido. Quer um uísque?</p><p>robert</p><p>Quem espera sempre alcança.</p><p>[richard vai até o aparador e traz uma bandeja pequena com o</p><p>decantador e os copos e os deposita na mesa.]</p><p>richard</p><p>(senta novamente, reclinando-se na poltrona) Sirva-se você mesmo,</p><p>por favor.</p><p>robert</p><p>(serve-se) E você? Firme? (richard balança a cabeça) Jesus,</p><p>quando eu penso nas nossas noitadas loucas dos velhos tempos —</p><p>falando sem parar, fazendo planos, brindes, festas…</p><p>richard</p><p>Na nossa casa.</p><p>robert</p><p>Agora é minha casa. Eu nunca me desfiz dela, apesar de não ir</p><p>muito lá. Quando quiser aparecer, me avise. Você precisa aparecer</p><p>lá numa noite dessas. Vai ser como nos velhos tempos. (ergue seu</p><p>copo e bebe) Prosit!13</p><p>richard</p><p>Não era só uma casa de festa; era para ter sido o lar de uma nova</p><p>vida. (pensativo) E em nome disso foram cometidos os nossos</p><p>pecados.</p><p>robert</p><p>Pecados! Bebida e blasfêmia (aponta para si mesmo) da minha</p><p>parte. E bebida e heresia, muito pior (aponta para o outro), da sua</p><p>parte — é desses pecados que você está falando?</p><p>richard</p><p>E de mais alguns.</p><p>robert</p><p>(com jovialidade, intranquilo) Você está falando das mulheres. Eu</p><p>não tenho remorsos. Talvez você tenha. Nós possuíamos duas</p><p>chaves nessas ocasiões. (maliciosamente) Você ainda tem a sua?</p><p>richard</p><p>(irritado) Para você era tudo muito natural?</p><p>robert</p><p>Para mim é muito natural beijar uma mulher de quem eu gosto. Por</p><p>que não? Para mim ela é linda.</p><p>richard</p><p>(brincando com a almofada da poltrona) Você beija tudo que acha</p><p>lindo?</p><p>robert</p><p>Tudo — se for beijável. (pega na mesa uma pedra achatada) Esta</p><p>pedra, por exemplo. É tão fresca, tão lustrosa, tão delicada, como a</p><p>têmpora de uma mulher. É calada, tolera nossa paixão; e é linda.</p><p>(encosta-a nos lábios)</p><p>E assim eu lhe dou um beijo, porque ela é</p><p>linda. E o que é uma mulher? Uma obra da natureza também, como</p><p>uma pedra, uma flor ou um pássaro. Um beijo é um ato de</p><p>homenagem.</p><p>richard</p><p>É um ato de união entre um homem e uma mulher. Apesar de</p><p>muitas vezes sermos levados ao desejo pela noção de beleza, será</p><p>que você pode dizer que o belo é o que nós desejamos?</p><p>robert</p><p>(apertando a pedra contra a testa) Você vai me deixar com dor de</p><p>cabeça se me fizer pensar. Hoje eu não consigo pensar. Estou me</p><p>sentindo natural demais, comum demais. Afinal, o que é o mais</p><p>atraente mesmo na mulher mais linda?</p><p>richard</p><p>O quê?</p><p>robert</p><p>Não aquelas qualidades que ela tem e as outras não têm, mas as</p><p>qualidades que ela tem em comum com as outras. Estou falando…</p><p>das mais comuns. (depois de virar a pedra, ele pressiona o outro</p><p>lado contra a testa) Estou falando de como o corpo dela produz</p><p>calor quando comprimido, do movimento do seu sangue, da</p><p>velocidade com que através da digestão ela transforma o que come</p><p>naquilo… cujo nome não direi. (rindo) Hoje estou muito comum.</p><p>Essa ideia nunca te ocorreu?</p><p>richard</p><p>(seco) Muitas ideias ocorrem a um homem que viveu nove anos</p><p>com uma mulher.</p><p>robert</p><p>Sim. Imagino que sim… esta linda pedra fria me faz bem. É um peso</p><p>de papel ou um remédio para dor de cabeça?</p><p>richard</p><p>Bertha trouxe um dia da praia.14 Ela também acha linda.</p><p>robert</p><p>(larga a pedra sem fazer barulho) Ela tem razão.</p><p>[Ele ergue o copo e bebe. Uma pausa.]</p><p>richard</p><p>Era só isso que você queria me dizer?</p><p>robert</p><p>(rápido) Tem outra coisa. O reitor te faz um convite, através de mim,</p><p>para hoje à noite — um jantar na casa dele. Sabe onde ele mora?</p><p>(richard faz que sim com a cabeça) Achei que você podia ter</p><p>esquecido. Estritamente particular, é claro. Ele quer te rever e insiste</p><p>que você aceite o convite.</p><p>richard</p><p>A que horas?</p><p>robert</p><p>Oito. Mas, como você, ele não leva horários tão a sério. Agora,</p><p>Richard, você não pode faltar. É só isso. Sinto que esta noite vai ser</p><p>o momento de virada da sua vida. Você vai viver aqui, trabalhar</p><p>aqui, pensar aqui e ser honrado aqui — entre os seus.</p><p>richard</p><p>(sorrindo) Já estou quase vendo dois mensageiros sendo enviados</p><p>aos Estados Unidos para conseguir dinheiro para erguer a minha</p><p>estátua daqui a cem anos.</p><p>robert</p><p>(simpático) Uma vez eu compus um pequeno epigrama sobre</p><p>estátuas. Todas as estátuas são de dois tipos. (cruza os braços</p><p>diante do peito) A estátua que diz: Como é que eu vou descer</p><p>daqui? e a do outro tipo (descruza os braços e estende o braço</p><p>direito, desviando a cabeça) a estátua que diz: No meu tempo a</p><p>pilha de esterco era desta altura.</p><p>richard</p><p>Para mim a segunda, por favor.</p><p>robert</p><p>(preguiçosamente) Você me dá um daqueles seus charutos</p><p>compridos?</p><p>[richard escolhe na caixa sobre a mesa uma cigarrilha da Virgínia,</p><p>e a passa para ele com a palha retirada.]</p><p>robert</p><p>(acendendo) Essas cigarrilhas me europeízam. Se a Irlanda se</p><p>tornar uma nova Irlanda, ela primeiro tem que virar europeia. E é</p><p>para isso que você está aqui, Richard. Um dia vamos ter que</p><p>escolher entre a Inglaterra e a Europa. Eu sou descendente dos</p><p>estrangeiros escuros;15 por isso gosto de estar aqui. Posso ser</p><p>infantil, mas em que outro lugar de Dublin consigo encontrar um</p><p>charuto bandido como este aqui ou uma xícara de café preto? O</p><p>homem que bebe café preto há de conquistar a Irlanda. E agora vou</p><p>aceitar só meia dose daquele uísque, Richard, para mostrar que não</p><p>guardo rancor.</p><p>richard</p><p>(aponta) Pode se servir.</p><p>robert</p><p>(obedece) Obrigado. (bebe e continua falando) E ainda tem você,</p><p>esse seu jeito de se espichar na poltrona. O sotaque do seu filho e</p><p>também… a própria Bertha. Permite que eu me refira a ela assim,</p><p>Richard? Quer dizer, como um velho amigo de vocês dois.</p><p>richard</p><p>Ah, mas por que não?</p><p>robert</p><p>(animado) Você tem essa indignação furiosa que lacerava o coração</p><p>de Swift.16 Você caiu de um mundo superior, Richard, e é invadido</p><p>por uma indignação furiosa quando descobre que a vida é covarde e</p><p>ignóbil. Enquanto eu… será que devo te dizer?</p><p>richard</p><p>Mas certamente.</p><p>robert</p><p>(de modo malicioso) Provenho de um mundo inferior e fico pasmo</p><p>quando descubro que as pessoas têm alguma virtude que as</p><p>redime.</p><p>richard</p><p>(de repente senta-se ereto e apoia os cotovelos na mesa) Você é</p><p>meu amigo então?</p><p>robert</p><p>(sério) Eu lutei por você nesse tempo todo da sua ausência. Lutei</p><p>para trazer vocês de volta. Lutei para guardar o seu lugar aqui. E</p><p>ainda vou lutar porque tenho fé em você, a fé de um discípulo em</p><p>seu mestre. Não posso dizer mais que isso. Pode parecer</p><p>estranho… Me passe um fósforo.</p><p>richard</p><p>(acende um fósforo, que lhe oferece) Existe uma fé ainda mais</p><p>estranha que a do discípulo em seu mestre.</p><p>robert</p><p>E qual seria?</p><p>richard</p><p>A fé do mestre no discípulo que vai traí-lo.17</p><p>robert</p><p>A Igreja perdeu um teólogo em você, Richard. Mas acho que você</p><p>analisa a vida a fundo demais. (levanta-se, apertando levemente o</p><p>braço de richard) Seja feliz. A vida não merece.</p><p>richard</p><p>(sem se levantar) Você já está indo?</p><p>robert</p><p>Eu preciso. (vira-se e diz em tom amistoso) Então está combinado.</p><p>Nos vemos hoje à noite na casa do vice-reitor. Devo aparecer lá</p><p>pelas dez. Para vocês poderem ficar cerca de uma hora sozinhos.</p><p>Você me espera chegar?</p><p>richard</p><p>Certo.</p><p>robert</p><p>Mais um fósforo e fico satisfeito.</p><p>[richard risca outro fósforo, entrega a ele e se levanta também.</p><p>archie entra pela porta da esquerda, seguido por beatrice.]</p><p>robert</p><p>Pode me dar os parabéns, Beatty. Conquistei o Richard.</p><p>archie</p><p>(indo até a porta da direita, grita) Mamãe, a srta. Justice está indo</p><p>embora.</p><p>beatrice</p><p>Você merece parabéns por quê?</p><p>robert</p><p>Por uma vitória, claro. (pondo a mão de leve no ombro de richard) O</p><p>descendente de Archibald Hamilton Rowan18 voltou para casa.</p><p>richard</p><p>Eu não sou descendente de Hamilton Rowan.</p><p>robert</p><p>Que diferença faz?</p><p>[bertha entra pela direita com um vaso de rosas.]</p><p>beatrice</p><p>O sr. Rowan já…?</p><p>robert</p><p>(dirigindo-se a bertha) Richard vai hoje à noite ao jantar do vice-</p><p>reitor. Vão consumir o bezerro selvagem: assado, espero. E a</p><p>próxima reunião do conselho confirmará o descendente de um xará</p><p>etcétera, etcétera numa cátedra da universidade. (estende a mão)</p><p>Boa tarde, Richard. Nos vemos à noite.</p><p>richard</p><p>(toca a mão dele) Em Filipos.19</p><p>beatrice</p><p>(trocando também um aperto de mãos) Fico torcendo pelo seu</p><p>sucesso, sr. Rowan.</p><p>richard</p><p>Obrigado. Mas não acredite no Robert.</p><p>robert</p><p>(com vivacidade) Acredite sim, acredite sim. (para bertha) Boa tarde,</p><p>sra. Rowan.</p><p>bertha</p><p>(apertando com sinceridade a mão dele) Eu também te agradeço.</p><p>(para beatrice) Não vai ficar para o chá, srta. Justice?</p><p>beatrice</p><p>Não, obrigada. (despede-se dela) Preciso ir. Boa tarde. Até mais,</p><p>Archie. (saindo) robert</p><p>Addio, Archibald.</p><p>archie</p><p>Addio.</p><p>robert</p><p>Espere, Beatty. Eu te acompanho.</p><p>beatrice</p><p>(saindo pela direita com bertha) Ah, não se incomode.</p><p>robert</p><p>(indo atrás dela) Mas eu insisto… como primo.</p><p>[bertha, beatrice e robert saem pela porta da esquerda. richard</p><p>fica indeciso perto da mesa. archie fecha a porta que leva ao</p><p>corredor da entrada e, vindo até ele, puxa a manga de seu</p><p>paletó.]</p><p>archie</p><p>Então, papai!</p><p>richard</p><p>(distraído) O quê?</p><p>archie</p><p>Eu queria perguntar uma coisa.</p><p>richard</p><p>(sentado na beira da poltrona, olhos fixos à frente) O quê?</p><p>archie</p><p>O senhor pede para a mamãe me deixar sair de manhã com o</p><p>leiteiro?</p><p>richard</p><p>Com o leiteiro?</p><p>archie</p><p>É. Na carroça do leite. Ele diz que vai me deixar segurar as rédeas</p><p>quando a gente chegar nas ruas mais sem gente. O cavalo é um</p><p>bicho bem bonzinho. Posso ir?</p><p>richard</p><p>Pode.</p><p>archie</p><p>Pergunta então para a mamãe se eu posso ir. Tudo bem?</p><p>richard</p><p>(lança um olhar para a porta) Tudo bem.</p><p>archie</p><p>Ele disse que vai me mostrar as vacas que ele tem lá no campo. O</p><p>senhor sabe quantas vacas ele tem?</p><p>richard</p><p>Quantas?</p><p>archie</p><p>Onze. Oito vermelhas e três brancas. Mas uma está doente. Não,</p><p>doente não. Mas ela caiu.</p><p>richard</p><p>Vacas?</p><p>archie</p><p>(com um gesto) Êêê… Touro é que não. Porque touro não dá leite.</p><p>Onze vacas. Elas devem dar</p><p>bastante leite. Por que que as vacas</p><p>dão leite?</p><p>richard</p><p>(segura a mão dele) Quem é que sabe? Você entende o que</p><p>significa dar uma coisa?</p><p>archie</p><p>Dar? Entendo, sim.</p><p>richard</p><p>Se você tem uma coisa, alguém pode tirar de você.</p><p>archie</p><p>Os ladrões? Certo?</p><p>richard</p><p>Mas se você dá essa coisa, ela está dada. Nenhum ladrão pode tirá-</p><p>la de você. (ele curva a cabeça e encosta a mão do filho no rosto)</p><p>Ela é sua para sempre depois que você deu. Vai ser sua para</p><p>sempre. Isso é que é dar.</p><p>archie</p><p>Mas, papai?</p><p>richard</p><p>Sim?</p><p>archie</p><p>Como é que um ladrão pode roubar uma vaca? Todo mundo ia ver.</p><p>De noite, quem sabe…</p><p>richard</p><p>De noite, isso mesmo.</p><p>archie</p><p>Aqui tem ladrão que nem em Roma?</p><p>richard</p><p>Existe gente pobre em toda parte.</p><p>archie</p><p>E eles têm revólver?</p><p>richard</p><p>Não.</p><p>archie</p><p>Faca? Eles têm faca?</p><p>richard</p><p>(sério) Têm, têm. Faca e revólver.</p><p>archie</p><p>(retira a mão) Pergunte pra mamãe agora. Ela está vindo.</p><p>richard</p><p>(esboça um gesto de se levantar) Vou perguntar, sim.</p><p>archie</p><p>Não, senta aí, papai. O senhor espera pra perguntar quando ela</p><p>voltar. Eu não fico aqui. Eu vou para o jardim.</p><p>richard</p><p>(afundando de novo na poltrona) Isso. Vai.</p><p>archie</p><p>(dá um beijo apressado no pai) Obrigado.</p><p>[Ele sai correndo pela porta dos fundos, que dá para o jardim.</p><p>bertha entra pela porta da esquerda. Aproxima-se da mesa e fica</p><p>parada ao lado dela, mexendo nas pétalas das rosas, olhando</p><p>para richard.]</p><p>richard</p><p>(olhando para ela) E então?</p><p>bertha</p><p>(distraída) Bem. Ele diz que gosta de mim.</p><p>richard</p><p>(apoia o queixo na mão) Você mostrou o bilhete?</p><p>bertha</p><p>Mostrei. Perguntei o que aquilo queria dizer.</p><p>richard</p><p>E o que ele falou que queria dizer?</p><p>bertha</p><p>Ele disse que eu devia saber. Eu disse que fazia ideia. Aí ele me</p><p>disse que gostava muito de mim. Que eu era linda — essas coisas.</p><p>richard</p><p>Desde quando!</p><p>bertha</p><p>(de novo distraída) Desde quando o quê?</p><p>richard</p><p>Desde quando ele disse que gosta de você?</p><p>bertha</p><p>Sempre, ele disse. Só que mais desde que voltamos. Ele disse que</p><p>eu era como a lua com este vestido cor de lavanda. (olhando para</p><p>ele) Você discutiu com ele… sobre mim?</p><p>richard</p><p>(de um jeito brando) O de sempre. Não sobre você.</p><p>bertha</p><p>Ele estava muito nervoso. Você percebeu?</p><p>richard</p><p>Percebi. Percebi, sim. O que mais aconteceu?</p><p>bertha</p><p>Ele pediu a minha mão.</p><p>richard</p><p>(sorrindo) Em casamento?</p><p>bertha</p><p>(sorrindo) Não, só para segurar.</p><p>richard</p><p>E você deu?</p><p>bertha</p><p>Dei. (arrancando algumas pétalas) Aí ele fez carinho na minha mão</p><p>e perguntou se eu deixava ele me dar um beijo. Eu deixei.</p><p>richard</p><p>E depois?</p><p>bertha</p><p>Aí ele perguntou se podia me abraçar — nem que fosse uma vez.</p><p>Aí…</p><p>richard</p><p>E aí?</p><p>bertha</p><p>Ele me abraçou.</p><p>richard</p><p>(encara o chão por um instante, depois olha de novo para ela) E aí?</p><p>bertha</p><p>Ele disse que eu tinha olhos lindos. E perguntou se podia beijar os</p><p>meus olhos (faz um gesto) Eu disse: Beije.</p><p>richard</p><p>E ele beijou?</p><p>bertha</p><p>Sim. Primeiro um, depois o outro. (interrompe-se de repente) Me</p><p>diga, Dick, isso não te perturba? Porque eu te disse que não quero.</p><p>Acho que você está só fingindo que não se incomoda. Eu não me</p><p>incomodo.</p><p>richard</p><p>(baixinho) Eu sei, querida. Mas quero descobrir o que ele quer dizer</p><p>e o que ele sente tanto quanto você.</p><p>bertha</p><p>(aponta para ele) Lembre-se, foi você que me deixou ir em frente</p><p>com isso. Eu te contei tudo desde o começo.</p><p>richard</p><p>(como antes) Eu sei, querida… E depois?</p><p>bertha</p><p>Ele me pediu um beijo. Eu disse: Roube.</p><p>richard</p><p>E aí?</p><p>bertha</p><p>(amassando um punhado de pétalas) Ele me beijou.</p><p>richard</p><p>Na boca?</p><p>bertha</p><p>Uma ou duas vezes.</p><p>richard</p><p>Beijos longos?</p><p>bertha</p><p>Bem longos. (reflete) Sim, da última vez.</p><p>richard</p><p>(esfrega lentamente as mãos; depois) Com os lábios? Ou… do outro</p><p>jeito?</p><p>bertha</p><p>Sim, na última vez.</p><p>richard</p><p>Ele pediu para você dar um beijo nele?</p><p>bertha</p><p>Pediu.</p><p>richard</p><p>Você deu?</p><p>bertha</p><p>(hesita, depois olha fixo para ele) Dei. Eu dei um beijo nele.</p><p>richard</p><p>Como?</p><p>bertha</p><p>(dando de ombros) Ah, do jeito simples.</p><p>richard</p><p>Você estava excitada?</p><p>bertha</p><p>Bom, você pode imaginar. (fechando o rosto de repente) Não muito.</p><p>Ele não tem uma boca boa… Mas ainda assim eu estava excitada,</p><p>claro. Mas não como com você, Dick.</p><p>richard</p><p>Ele estava?</p><p>bertha</p><p>Excitado? Sim, acho que sim. Estava suspirando. Acho que estava</p><p>nervosíssimo.</p><p>richard</p><p>(descansando a testa na mão) Sei.</p><p>bertha</p><p>(aproxima-se da poltrona e fica parada perto dele) Você está com</p><p>ciúme?</p><p>richard</p><p>(como antes) Não.</p><p>bertha</p><p>(baixinho) Você está, Dick.</p><p>richard</p><p>Eu não estou. Ciúme do quê?</p><p>bertha</p><p>Porque ele me beijou.</p><p>richard</p><p>(levanta a cabeça) Foi só isso?</p><p>bertha</p><p>Foi. Só isso. Mas ele perguntou se eu podia me encontrar com ele.</p><p>richard</p><p>Em algum lugar na rua?</p><p>bertha</p><p>Não. Na casa dele.</p><p>richard</p><p>(surpreso) Lá com a mãe dele, por acaso?</p><p>bertha</p><p>Não, numa casa que ele tem. Ele escreveu o endereço para mim.</p><p>[Ela vai até a escrivaninha, tira a chave do vaso de flores,</p><p>destranca a gaveta e volta para ele com o papelzinho.]</p><p>richard</p><p>(quase para si próprio) O nosso chalé.</p><p>bertha</p><p>(passa o papel para ele) Aqui.</p><p>richard</p><p>(lê) É. O nosso chalé.</p><p>bertha</p><p>Nosso…?</p><p>richard</p><p>Não, dele. Eu chamo de nosso. (olhando para ela) O chalezinho de</p><p>que eu te falei tantas vezes — do qual nós dois tínhamos a chave,</p><p>ele e eu. Agora é dele. Onde nós tínhamos as nossas loucas</p><p>noitadas, conversa, bebida, planos — naquela época. Grandes</p><p>noitadas; sim. Ele e eu juntos. (joga o papelzinho no sofá e se</p><p>levanta de repente) E às vezes eu sozinho. (olha fixamente para ela)</p><p>Mas não exatamente sozinho. Eu te contei. Lembra?</p><p>bertha</p><p>(chocada) Aquele lugar?</p><p>richard</p><p>(afasta-se alguns passos dela e fica parado, pensando, a mão no</p><p>queixo) Sim.</p><p>bertha</p><p>(pegando de novo o papelzinho) Onde fica?</p><p>richard</p><p>Você não sabe?</p><p>bertha</p><p>Ele me disse para pegar o bonde na Lansdowne Road e pedir para</p><p>o motorneiro parar lá perto. É… é algum lugar ruim?</p><p>richard</p><p>Ah, não. Chalés. (volta para a poltrona e senta) Que resposta você</p><p>deu?</p><p>bertha</p><p>Nenhuma. Ele disse que estará esperando.</p><p>richard</p><p>Hoje à noite?</p><p>bertha</p><p>Todas as noites, ele disse. Entre oito e nove horas.</p><p>richard</p><p>Então é para eu ir a essa entrevista hoje à noite — com o professor.</p><p>Sobre o emprego pelo qual eu devo implorar. (olhando para ela) A</p><p>entrevista foi marcada por ele para esta noite — entre oito e nove</p><p>horas. Curioso, não é? No mesmo horário.</p><p>bertha</p><p>Muito.</p><p>richard</p><p>Ele te perguntou se eu desconfiava de alguma coisa?</p><p>bertha</p><p>Não.</p><p>richard</p><p>Chegou a mencionar o meu nome?</p><p>bertha</p><p>Não.</p><p>richard</p><p>Nem uma única vez?</p><p>bertha</p><p>Não que eu me lembre.</p><p>richard</p><p>(levantando-se de um salto) Ah, sim! Está mais do que claro!</p><p>bertha</p><p>O quê?</p><p>richard</p><p>(andando de um lado para outro) Mentiroso, ladrão e burro! Está</p><p>mais do que claro! Um ladrãozinho ordinário! Qual a dúvida? (com</p><p>uma risada áspera) Meu grande amigo! E patriota também!</p><p>Ladrão… qual a dúvida? (para, metendo as mãos nos bolsos) E</p><p>também um burro!</p><p>bertha</p><p>(olhando para ele) O que você vai fazer?</p><p>richard</p><p>(seco) Vou segui-lo. Encontrar o camarada. Dizer tudo. (calmo)</p><p>Poucas palavras e pronto. Ladrão e burro.</p><p>bertha</p><p>(joga o papelzinho no sofá) Entendi tudo!</p><p>richard</p><p>(dirigindo-se a ela) Hein?</p><p>bertha</p><p>(com raiva) Obra de um demônio.</p><p>richard</p><p>Ele?</p><p>bertha</p><p>(virando-se contra ele) Não, você! Obra de um demônio, para fazer</p><p>ele ficar contra mim da mesma forma que tentou fazer o meu próprio</p><p>filho ficar contra mim. Só que não conseguiu!</p><p>richard</p><p>Como? Mas como, meu Deus?</p><p>bertha</p><p>(agitada) Isso mesmo. O que eu disse. Todo mundo percebeu. Toda</p><p>vez que eu tentava corrigir qualquer coisinha nele, você vinha com</p><p>as suas loucuras, falando como se ele fosse adulto. Estragando o</p><p>coitado do menino, ou tentando. Aí é claro que eu era a mãe</p><p>malvada e só você tinha amor por ele. (cada vez mais agitada) Mas</p><p>você não conseguiu que ele ficasse contra mim — contra a própria</p><p>mãe. Sabe por quê? Porque o menino tem uma boa natureza.</p><p>richard</p><p>Eu nunca tentei fazer uma coisa dessa, Bertha.</p><p>Você sabe que eu</p><p>não consigo ser duro com uma criança.</p><p>bertha</p><p>Porque você nunca amou nem a sua própria mãe. Mãe é sempre</p><p>mãe, aconteça o que acontecer. Eu nunca ouvi falar de um ser</p><p>humano que não amasse a mãe que pôs ele no mundo, fora você.</p><p>richard</p><p>(aproximando-se dela em silêncio) Bertha, não diga coisas de que</p><p>vai se arrepender. Você não fica feliz que o meu filho goste de mim?</p><p>bertha</p><p>Quem ensinou ele a gostar? Quem ensinou ele a correr para te</p><p>encontrar? Quem disse para ele que você ia trazer brinquedos,</p><p>quando você estava lá nas suas caminhadas na chuva, sem nem</p><p>pensar nele… e em mim? Fui eu. Eu ensinei o menino a te amar.</p><p>richard</p><p>Sim, querida. Eu sei que foi você.</p><p>bertha</p><p>(quase chorando) E aí você tenta botar todo mundo contra mim.</p><p>Tudo tem que ser por você. Eu tenho que parecer falsa e cruel para</p><p>todo mundo, fora você. Você tira vantagem da minha simplicidade</p><p>como fez na primeira vez.</p><p>richard</p><p>(com violência) Você tem coragem de me dizer uma coisa dessa?</p><p>bertha</p><p>(virada para ele) Tenho, tenho sim! Tive e tenho. Só porque</p><p>eu sou simples você acha que pode fazer o que quiser comigo.</p><p>(gesticulando) Vá atrás dele agora. Xingue. Faça ele se sentir</p><p>pequeno na sua frente, e faça ele me desprezar. Vá atrás dele!</p><p>richard</p><p>(controlando-se) Você esquece que te dei plena liberdade — e ainda</p><p>dou.</p><p>bertha</p><p>(com desdém) Liberdade!</p><p>richard</p><p>Sim, plena. Mas ele precisa saber que eu sei. (com mais calma) Vou</p><p>conversar com ele com tranquilidade. (em tom de súplica) Bertha,</p><p>acredite em mim, querida! Não é ciúme. Você tem plena liberdade</p><p>para agir como quiser — você e ele. Mas não dessa maneira. Ele</p><p>não vai te desprezar. Você não quer me enganar nem fingir que me</p><p>engana com ele, não é verdade?</p><p>bertha</p><p>Não, não quero. (olhando direto para ele) Quem aqui está</p><p>enganando alguém?</p><p>richard</p><p>De nós? Você e eu?</p><p>bertha</p><p>(num tom calmo, decidido) Eu sei por que você me concedeu isso</p><p>que fica chamando de plena liberdade.</p><p>richard</p><p>Por quê?</p><p>bertha</p><p>Para ter você mesmo plena liberdade com… aquela moça.</p><p>richard</p><p>(irritado) Mas, santo Deus, você sempre soube. Eu nunca escondi.</p><p>bertha</p><p>Escondeu, sim. Eu achava que era alguma amizade entre vocês —</p><p>até a gente voltar, e aí eu percebi.</p><p>richard</p><p>E é, Bertha.</p><p>bertha</p><p>(balança a cabeça) Não, não é. É muito mais; por isso você me dá</p><p>plena liberdade. Essas coisas todas que você passa a noite</p><p>inteirinha escrevendo (aponta para o escritório) ali… sobre ela.</p><p>Chama isso de amizade?</p><p>richard</p><p>Acredite em mim, Bertha, minha querida. Acredite em mim como eu</p><p>acredito em você.</p><p>bertha</p><p>(com um gesto impulsivo) Meu Deus, eu sinto! Eu sei! O que mais</p><p>existe entre vocês além de amor?</p><p>richard</p><p>(calmo) Você fica tentando colocar essa ideia na minha cabeça, mas</p><p>te aviso que as minhas ideias nunca vêm de outras pessoas.</p><p>bertha</p><p>(irritada) É sim, é sim! Por essa razão você deixa ele continuar com</p><p>isso. Claro! Não te afeta. É a ela que você ama.</p><p>richard</p><p>Amar! (abre os braços com um suspiro e se afasta dela) Eu não</p><p>consigo discutir com você.</p><p>bertha</p><p>Não consegue porque eu tenho razão. (dando alguns passos atrás</p><p>dele) O que os outros iriam dizer?</p><p>richard</p><p>(vira-se para ela) Você acha que eu me importo?</p><p>bertha</p><p>Mas eu me importo. O que ele ia dizer se soubesse? Você, que fala</p><p>tanto do sentimento elevado que tem por mim, se expressando aí</p><p>desse jeito para outra mulher. Se ele fizesse uma coisa dessa, ou</p><p>outros homens, eu até podia entender, porque eles são falsos</p><p>pretendentes. Mas você, Dick! Por que você não conta para ele</p><p>então?</p><p>richard</p><p>Você pode contar, se quiser.</p><p>bertha</p><p>E vou. Vou mesmo.</p><p>richard</p><p>(com frieza) Ele vai te explicar.</p><p>bertha</p><p>Ele não diz uma coisa e faz outra. Ele é honesto, lá do jeito dele.</p><p>richard</p><p>(arranca uma rosa e a joga aos pés dela) Ah, pode apostar! A</p><p>própria alma da honra!</p><p>bertha</p><p>Pode rir dele o quanto você quiser. Eu entendo mais do que você</p><p>pensa dessas questões. E ele também vai entender. Escrevendo</p><p>aquelas cartas enormes para ela, anos a fio, e ela para você. Anos a</p><p>fio. Mas depois que eu voltei eu entendo — entendo bem.</p><p>richard</p><p>Você não entende. Nem ele ia entender.</p><p>bertha</p><p>(ri com desdém) Claro. Nem eu nem ele podemos entender. Só ela.</p><p>Porque é uma coisa tão profunda!</p><p>richard</p><p>(com raiva) Nem ele nem você — e nem ela também! Nenhum de</p><p>vocês!</p><p>bertha</p><p>(com amargura) Ela vai! Ela vai entender! Aquela doente!</p><p>[Ela dá as costas para ele e caminha até a mesinha da direita.</p><p>richard contém um gesto súbito. Pausa breve.]</p><p>richard</p><p>(solene) Bertha, cuidado ao dizer palavras como essas!</p><p>bertha</p><p>(dirigindo-se a ele, agitada) Eu não estou falando por mal! Tenho</p><p>mais pena dela do que você, por ser mulher. Tenho mesmo,</p><p>sinceramente. Mas o que estou dizendo é verdade.</p><p>richard</p><p>Mas é generoso? Pense.</p><p>bertha</p><p>(apontando para o jardim) Ela é que não tem generosidade. Não</p><p>esqueça o que eu estou dizendo.</p><p>richard</p><p>O quê?</p><p>bertha</p><p>(aproxima-se mais; num tom mais calmo) Você deu muito a essa</p><p>mulher, Dick. E ela pode valer. E pode entender tudo também. Eu</p><p>sei que ela é desse tipo.</p><p>richard</p><p>Você acredita mesmo nisso?</p><p>bertha</p><p>Acredito. Mas acredito que você vai conseguir muito pouco em troca</p><p>— dela ou de qualquer pessoa daquele clã. Lembre-se das minhas</p><p>palavras, Dick. Porque ela não é generosa e eles não são</p><p>generosos. Está tudo errado o que estou dizendo? Está?</p><p>richard</p><p>(sombrio) Não. Não mesmo.</p><p>[Ela se abaixa, pega a rosa no chão e a coloca de novo no vaso.</p><p>Ele fica olhando. brigid aparece na porta sanfonada à direita.]</p><p>brigid</p><p>O chá está servido, madame.</p><p>bertha</p><p>Muito bem.</p><p>brigid</p><p>O menino está no jardim?</p><p>bertha</p><p>Está. Mande ele entrar.</p><p>[brigid atravessa o cômodo e sai para o jardim. bertha vai na</p><p>direção das portas da direita. Ao chegar à poltrona, para e pega o</p><p>papelzinho.]</p><p>brigid</p><p>(no jardim) Archie! É para você entrar para o chá.</p><p>bertha</p><p>É para eu ir a esse lugar?</p><p>richard</p><p>Você quer ir?</p><p>bertha</p><p>Quero descobrir do que ele está falando. É para eu ir?</p><p>richard</p><p>Por que você está me perguntando? Decida sozinha.</p><p>bertha</p><p>Você diz para eu ir?</p><p>richard</p><p>Não.</p><p>bertha</p><p>Você me proíbe de ir?</p><p>richard</p><p>Não.</p><p>brigid</p><p>(no jardim) Vem logo, Archie! O chá está esperando.</p><p>[brigid atravessa o cômodo e sai pela porta sanfonada. bertha</p><p>dobra o papelzinho, guarda-o no cós do vestido e caminha</p><p>lentamente para a direita. Perto da porta ela se vira e para.]</p><p>bertha</p><p>Diga para eu não ir e eu não vou.</p><p>richard</p><p>(sem olhar para ela) Decida sozinha.</p><p>bertha</p><p>Você vai me acusar depois?</p><p>richard</p><p>(irritado) Não, não! Eu não vou te acusar. Você é livre. Eu não posso</p><p>te acusar.</p><p>[archie aparece à porta do jardim.]</p><p>bertha</p><p>Eu não te enganei.</p><p>[Ela sai pela porta sanfonada. richard permanece parado junto à</p><p>mesa. archie, depois que a mãe sai, corre para richard.]</p><p>archie</p><p>(apressado) Então, perguntou pra ela?</p><p>richard</p><p>(assustado) O quê?</p><p>archie</p><p>Posso ir?</p><p>richard</p><p>Pode.</p><p>archie</p><p>De manhã? Ela disse que eu posso?</p><p>richard</p><p>Sim. De manhã.</p><p>[Ele passa um braço pelos ombros do filho e olha carinhosamente</p><p>para ele.]</p><p>Segundo ato</p><p>[Um cômodo do chalé de robert hand em Ranelagh. À direita, perto</p><p>da boca do palco, um pequeno piano preto, em cuja estante há uma</p><p>partitura aberta. Mais ao fundo, uma porta leva a outra, que dá para</p><p>a rua. Na parede do fundo, uma porta sanfonada, coberta por uma</p><p>cortina escura, leva a um quarto. Perto do piano, uma mesa grande,</p><p>sobre a qual há uma luminária alta a óleo com uma ampla cúpula</p><p>amarela. Cadeiras estofadas perto dessa mesa. Uma pequena</p><p>mesa de cartas mais à frente. Contra a parede dos fundos, uma</p><p>estante de livros. Na parede da esquerda, no fundo, uma janela dá</p><p>para o jardim e, na frente, uma porta com varanda, também leva ao</p><p>jardim. Poltronas aqui e ali. Plantas na varanda e perto da porta</p><p>sanfonada coberta pela cortina. Nas paredes há muitos quadros</p><p>com desenhos em preto e branco. No canto direito, no fundo, um</p><p>aparador; e no centro do cômodo, à esquerda da mesa, um conjunto</p><p>formado por um narguilé grande, um pequeno forno a óleo, que não</p><p>está aceso, e uma</p>
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